São Paulo, segunda-feira, 18 de dezembro de 1995
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O mundo tem charme sem a globalização

MARCELO PAIVA

Um sobrinho feliz da vida ganhou de aniversário um baita relógio. Me mostrou todo orgulhoso. Examinei com cuidado, dei uns apertões na tampa e disse inconscientemente: "Isto daria um bom centroavante".
Diante do seu olhar incrédulo, tive de me explicar. No meu tempo, ah, no meu tempo, jogávamos botão com tampas de relógio. Por anos, frequentava as relojoarias da cidade à caça do grande craque, sem contar os exames técnicos nos despertadores da família, que davam excelentes zagueiros; tampa pequena e baixa, centroavante, tampa pequena e alta, ponta, tampa média compunha o meio-campo, tampa grande, o zagueiro.
Os relojoeiros da cidade recebiam visitas de pencas de adolescentes, olheiros dos times dos sonhos. Nunca entendi por que tais relojoeiros não mudavam de ramo para se dedicar ao jogo de botão. Nos meus tempos, ah, nos meus tempos, era assim.
Havia aqueles que lixavam cocos para fabricar um artilheiro, sem contar os que produziam o craque de um fêmur de boi. O goleiro, fabricado artesanalmente com chumbo de pilha. Nossas calças, de tecidos de colchão velho. Sandálias, nós é que fazíamos, usando pneus velhos. Skates, fabricávamos os nossos, com placas de rua que roubávamos no calar da noite.
Uma visita a qualquer shopping center revela que o único trabalho que um adolescente tem é encontrar bons argumentos para arrancar uma grana dos pais. Grife, é uma palavra que não existia no vocabulário do meu tempo.

Encontrei um amigo que se lembrou que íamos todos os domingos ao bosque do Morumbi, onde assistíamos de graça show de gente como Luís Melodia, Adoniran Barbosa e Tom Zé. Nenhuma multidão, nem engarrafamento. Nos espalhávamos pela mata, às vezes com o próprio compositor. Uma vez, eu e os amigos decidimos ir de pijama. Sei lá por que fizemos isso. Performance, talvez. E nas semanas seguintes, muitos aderiram e começaram a aparecer de pijama; alguns traziam escovas de dente.
Moda é uma palavra que não existia no meu vocabulário. Nada de revistas especializadas, dessas que entregam, de bandeja, como deveremos ser e do que deveremos gostar, na próxima estação. Sei lá, o mundo não globalizado é tão mais criativo. Mas quem sou eu para...?

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