São Paulo, segunda-feira, 18 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Como evitar que os empregos fujam para a Ásia

NOENIO SPINOLA

Em um feriado de novembro de céu claro e rádios hipnotizadas com o movimento de descida dos automóveis rumo ao litoral, os executivos de uma instituição financeira paulista vestiram roupas de trabalho e saíram na direção oposta: foram até o QG da organização no centro deserto da cidade. Era o primeiro de uma série de dias roubados à praia em troca da conquista do certificado ISO 9002 para serviços prestados aos usuários.
Disciplinadamente sentados no auditório, depois do cafezinho, eles ouviram isso do gerente do projeto: "Os mercados brasileiros desperdiçam em média 33% das bananas oferecidas aos consumidores em suas gôndolas, 24% do abacaxi, 24% das mangas, 22% das laranjas. Tudo somado, a perda brasileira com frutas equivale a cinco vezes as exportações globais do Chile, o líder latino-americano em vendas internacionais, com cerca de US$ 1 bilhão por ano."
O desconforto cresceu enquanto o gerente vomitava números: "O índice de retrabalho (recondicionamento de peças entregues pelas fábricas) chega a 30% no Brasil contra 2% nos EUA e virtualmente zero no Japão. A rotatividade dos estoques sobe a 150/200 vezes por ano no Japão contra 8 no Brasil (quanto mais tempo o estoque dorme no pátio mais se gasta com juros). Aqui, o tempo médio de entrega das encomendas é de 35 dias, contra 2 nos tigres asiáticos."
A lista foi longe: enquanto Santos movimenta 13 contêineres por hora, Roterdã gira com 28. Gasta-se o equivalente a um saco de cereal para transportar o mesmo saco do Mato Grosso até os portos do leste. O que se desperdiça com o manuseio agrícola daria para sustentar vários planos de reforma agrária.
Certamente a organização que rifou a praia dos funcionários chegará ao ISO 9002, provando que nem tudo é desperdício e moleza macunaímica no país. Assim como ela, muitas outras ilhas de excelência estão se reorganizando para desafiar a maré negativa dos números acachapantes do Natal de 1995: cerca de 142 mil desempregados na indústria paulista contados desde o início do ano, segundo dados da Fiesp.
Apesar dos sucessos individuais, é preciso ver se os brasileiros como um todo estão motivados para reconstruir suas relações industriais e comerciais ou se estamos apenas ampliando um arquipélago de ilhas de excelência ao largo de um continente de misérias.
Há duas visões diferentes: o "scholar" Edmar Bacha descobriu que vivíamos em um país que poderia ser renomeado para "Belíndia" (mistura de Bélgica com Índia). Para sair da Belíndia e entrar no Primeiro Mundo inventou-se o Real e um monumental apelo ao aumento da produtividade. O deputado Delfim Netto sugeriu, contudo, que poderíamos estar saindo da Belíndia para entrar na "Ingana" (mistura de Índia com Gana), considerando-se os desafios impossíveis e os erros na sintonia fina do Real. Quem estará certo?
Parte da história universal explica-se por boa gerência econômica e financeira. Parte por boas ou más decisões políticas e pela força das armas. A parte esquecida é a cultura de um povo. Por isso quem ainda não leu deveria ler o mais novo livro de Francis Fukuyama: "Trust: the Social Virtues and the Creation of Prosperity", ou: "Confiança: as Virtudes Sociais e a Criação da Prosperidade". O autor é o mesmo de "O Fim da História e o Último Homem".
Fukuyama recupera o valor da confiança e da cultura nas sociedades e tenta medir o impacto que certos comportamentos têm sobre a produção industrial, agrícola, de serviços ou, em última análise, o bem-estar social. Como explicar, por exemplo, o fato de que a Toyota pode produzir 4,5 milhões de carros por ano com 65 mil operários quando a GM empregava 750 mil para produzir 8 milhões? Só pela robotização e organização? O ensaio é importante, pois ajuda a pensar melhor sobre as alternativas entre a utopia socialista e o individualismo capitalista ou a fria maximização racional das oportunidades.
Se o que gera o aumento da competitividade não é apenas a organização, a boa gerência, mas ainda a solidariedade, a qualidade da cultura, a confiança e a capacidade para cooperar dentro de uma sociedade, então é possível que muitas empresas tenham de rever suas lições de casa, procurando descobrir como não crescer sozinhas, mas alargando a base de sustentação do Real.
A redescoberta do "capital social" por Fukuyama é uma boa mensagem para aqueles que querem copiar modelos que deram certo, sem entender plenamente por que deram certo, pois é mais confortável ignorar as raízes do sucesso material, que envolve muito trabalho de base e muito suor.
Mas a leitura de Fukuyama requer alguns cuidados. Neste fim de século as guerras mudaram de lugar e as armas se transformaram em capital fixo a custo baixo, alta produtividade, "trading companies" atuando como infantarias para capturar consumidores em redor do mundo e Estados que não abandonaram o papel de berçário de suas empresas.
Considere este fato: a capitalização de mercado da Coréia equivale a 50% do PIB (a capitalização refere-se ao valor das ações das empresas no mercado). Nos EUA vai a 75%, no Japão sobe a 80. No Brasil, ficamos com 27%. Os dados são da "Emerging Markets" de setembro e da IFC.
A capitalização mede valores relativos no tempo (um mercado pode se valorizar mais do que outro), distorcendo as comparações. Mesmo assim, pode-se afirmar que os países mais capitalizados, que trabalham com mais capital fixo (capital de acionistas) a custos baixos, são os que exportam mais.
Do outro lado estão as empresas e países endividados. Parte da história contemporânea de sucesso dos asiáticos somente se explica pela capitalização e pelo comércio exterior ativo, conduzido quase em ritmo de guerra, "dumping", contrabando. As economias que mais crescem e mais geram empregos são exatamente as que mais exportam. O mercado brasileiro de ações deveria descobrir esse discurso, que não deveria girar só em torno do câmbio, mas também da qualidade, da capitalização e de um bom diálogo com os sindicatos.
A instituição onde se estuda o ISO 9002 desta história é cercada de camelôs por todos os lados, oferecendo desde cadeados chineses por R$ 1 até rádios, TVs portáteis, despertadores coreanos, ferramentas chinesas a preço de banana, roupas e presentes de todos os tipos com a clássica garantia paraguaia: "la garantia soy yo". Até gente fina e engravatada compra. Se quebrar, o camelô troca, pois é apenas a ponta de lança de uma engrenagem gigantesca, muito bem organizada e bilionária.
Existem números para quantificar esse cenário: segundo um estudo do Banco Mundial ("Workers in an Integrating World"), o mundo carrega nas costas 120 milhões de desempregados.
Considerando-se o período 1970/1990, os empregos aumentaram a uma taxa de 3% ao ano nos países que se orientaram para as exportações. Inversamente, foi negativa a taxa de geração de novos empregos no mesmo período nos países sem dinamismo exportador. Ora, 99% do aumento da força trabalho (ou dos candidatos ao trabalho) ocorrerá nas próximas décadas nos países de renda média. É óbvio que haverá mais guerra pelo comércio exterior e o Brasil terá de se aparelhar se não quiser continuar exportando empregos para a Ásia ou para vizinhos mais espertos.
É preciso resistir à tentação pessimista de inventar um país chamado "Bingo", misturando o criticismo dos descobridores da Belíndia com a Ingana e o surto nacional de febre pelo jogo. A única maneira de não cair nessa tentação será descobrir com muito suor uma rota ética do capital e do trabalho para "fugir para a frente". Possivelmente é isso que Fukuyama tentou sinalizar. Enquanto não descobrirmos esse caminho teremos de conviver com ilhas de excelência em mares de pobreza, bingos feéricos e camelôs paraguaios com seu refrão: "La garantia soy yo".

Texto Anterior: TUDO PELO SOCIAL; CARONA; PRECAUÇÃO PERIGOSA; SAIA JUSTA
Próximo Texto: Terrível realidade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.