São Paulo, terça-feira, 19 de dezembro de 1995
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Vergonha nacional

ERNANDO UCHOA LIMA

O Brasil, mesmo depois de devolvido à plenitude do Estado democrático de Direito, continua a frequentar com constrangedora assiduidade as listas de países violadores dos direitos humanos.
Já não há presos políticos nem cerceamento à liberdade de expressão, mas continua-se a incidir em práticas truculentas, incompatíveis com os conceitos contemporâneos de civilização.
Não há como fugir à triste e crua constatação: a tortura ainda é, por excelência, o método investigativo da polícia brasileira. É aplicada, em regra, junto aos segmentos mais carentes da população, sob a complacência das autoridades e a indiferença da sociedade como um todo. Não fosse essa monstruosa conivência, ditada pela omissão, já estaria banida de nossa paisagem institucional, tal como aconteceu com a tortura a presos políticos nos anos 70, no final do governo Geisel.
A impunidade alimenta o processo, que traça um complicado círculo vicioso, cujo ponto de partida é a desigualdade social brasileira. Ela faz com que convivam, no mesmo espaço físico, dois países, governados por critérios absolutamente distintos.
Há o país institucional, habitado pela classe média, que professa a democracia, elege seus governantes e possui Constituição consideravelmente avançada no campo da defesa dos direitos e garantias individuais.
E há o país informal, sem vez e sem voz, que vive na informalidade jurídica, sem lei e sem justiça. Esse país, pobre e desassistido, é habitado pela maior parte da população brasileira. Nele ignora-se o significado da palavra cidadania e não vigora qualquer mecanismo de proteção social. Vige a chamada "lei do cão", de que a tortura é um de seus mais dramáticos emblemas.
As reiteradas e comprovadas denúncias de violências praticadas no interior das penitenciárias, dos presídios e das delegacias de polícia evidenciam que imensa parcela da população brasileira vive ainda sob o terror das Ordenações Filipinas.
A Ordem dos Advogados do Brasil, instituição comprometida com a lei, a defesa dos direitos sociais e a cidadania, está determinada a mobilizar a sociedade brasileira em todos os seus estratos contra a presença, no limiar do século 21, de práticas que já no século 18 eram repudiadas pela doutrina jurídica e começavam a ser banidas das legislações penais.
É preciso esclarecer a população, reeducar a polícia, unificar o país e estender ao povo -fonte e destinação única da ação do poder institucional- os benefícios de uma Constituição feita em seu nome e para atendê-lo.
É imperioso que os autores de tais barbaridades sejam exemplarmente punidos e que os governos deixem de ser omissos, tolerantes, coniventes. Para que a tortura seja erradicada, não basta a existência de leis que a proíbam. Isso já temos. É preciso que haja vontade política do governo e da sociedade.
Tortura é recurso precário e perverso de investigação policial. Além de inconciliável com a moderna técnica do investigatório, não conduz à verdade e sim ao erro. Obtém confissões à base do terror, não das evidências. A ignorância dá sustentação à barbárie, na falsa presunção de que bandido não merece ser tratado como ser humano. A tortura afronta princípio universal do Direito, segundo o qual todo cidadão é inocente até prova em contrário.
Suspeição não configura culpa. E a tortura suprime a investigação, transformando suspeito em culpado, a partir de critérios inteiramente ilegais e desumanos, ensejando erros judiciários.
O governo Fernando Henrique assumiu o compromisso de elevar os padrões éticos da vida brasileira, tornando-a transparente e civilizada. Esse compromisso o faz tratar abertamente de violação a direitos humanos em fóruns internacionais, onde o Brasil, para vergonha nossa, figura ao lado de algumas das nações mais atrasadas do mundo como infrator sistemático.
Reconhecer a falta é o primeiro passo para corrigi-la. E essa iniciativa não se esgota no âmbito do governo. Exige também a participação da sociedade.
Sem eliminar essa prática medieval e levar justiça à sua população, o Brasil não vencerá o atraso. Para ingressar no Primeiro Mundo não basta exibir índices de performance econômica. É preciso dar-lhes consistência social. E a tortura, negação absoluta do mais elementar conceito de justiça, está em total contradição com esses objetivos.

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