São Paulo, terça-feira, 19 de dezembro de 1995
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O suicídio dos guaranis e os direitos humanos

MÉRCIO GOMES; PAULO DE BESSA ANTUNES

Os direitos humanos consagrados na nossa Constituição são aplicáveis aos índios
MÉRCIO GOMES e PAULO DE BESSA ANTUNES
A imprensa brasileira vem noticiando com bastante frequência os trágicos suicídios dos jovens guarani-kaiowas no Estado do Mato Grosso do Sul. Só neste ano foram 50 casos. De 1986 para cá são 191. No momento uma missão da Organização dos Estados Americanos (OEA), voltada para a análise do problema dos direitos humanos no Brasil, anuncia que irá investigar o caso.
O procurador-geral da República, o ministro da Justiça e o presidente da Funai foram às áreas indígenas para conhecer a questão de perto. Sem pretendermos fazer uma análise superficial de um problema que é extremamente grave e complexo, parece-nos, sem dúvida, que há um aspecto fundamental para a compreensão de tudo aquilo que está ocorrendo na imensa maioria das terras indígenas existentes no território brasileiro. Trata-se da demarcação e da proteção das terras indígenas.
Em realidade, a difícil situação atravessada pelas diversas etnias indígenas está sendo agravada por uma pressão explícita contra seus territórios.
Tal pressão é composta por interesses econômicos extremamente diferenciados e, por incrível que pareça, pelo próprio governo brasileiro que, através do senhor ministro da Justiça, pretende revogar o decreto nº 22/91 -que é o instrumento legal pelo qual é regulada a demarcação administrativa das terras indígenas.
Sua excelência alega que o decreto 22/91 é violador dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Tais questões já foram comentadas em outro artigo (Folha, 27/10/95).
O que importa ressaltar no presente artigo é que, sem dúvida, a constante invasão de áreas indígenas pelos mais diferentes tipos de aventureiros, a constante diminuição dos territórios indígenas, o massacre étnico e cultural são elementos fundamentais de um caldo de cultura que tem gerado situações patéticas. O caso dos guarani-kaiowas talvez seja o mais gritante, mas lamentavelmente não é o único.
A propósito, merece ser registrado que toda a discussão acerca do decreto nº 22/91 foi originada por um processo que, atualmente, tramita perante o Supremo Tribunal Federal e que diz respeito a uma outra área guarani no Estado do Mato Grosso do Sul.
Levar a sério a questão dos direitos humanos em relação aos índios é, indiscutivelmente, enfrentar, com vigor e determinação, o desafio da demarcação das terras indígenas que, aliás, nos termos do artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), deveria ter sido totalmente concluída em 5 de outubro de 1993.
O ataque aos direitos originários dos indígenas sobre as suas terras é a ameaça mais grave aos direitos humanos desses povos.
Não se pode deixar de observar que, do ponto de vista constitucional, os direitos humanos consagrados no artigo 5º de nossa Constituição são aplicáveis em sua integridade aos índios. E mais, o artigo 231 da mesma Constituição, no qual são definidos os direitos dos povos indígenas, deve ser compreendido como um adensamento, natural e necessário, dos direitos humanos.
Não há contradição entre os artigos 5º e 231 da Constituição, pelo contrário, existe complementação. Acrescente-se que um dos fundamentos do Estado de Direito democrático no Brasil é a dignidade da pessoa humana (art. 1º da Constituição).
Dignidade da pessoa humana, no caso dos povos indígenas, se materializa no pleno reconhecimento constitucional dos direitos humanos fundamentais de possuir organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Mas tais particularidades culturais só podem se expressar completamente por meio da garantia do reconhecimento dos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas.
É imprescindível, portanto, que as autoridades públicas, em especial o Ministério da Justiça e a Funai, façam cumprir a determinação do artigo 67 do ADCT para que sejam efetivados os direitos humanos dos povos indígenas. Desse modo, com toda certeza, se estará dando um passo decisivo para o término de situações chocantes como a do suicídio dos guarani-kaiowas.

MÉRCIO GOMES, 44, antropólogo, é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense.

PAULO DE BESSA ANTUNES, 39, é procurador regional da República e professor de direito das Faculdades Cândido Mendes (RJ).

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