São Paulo, quarta-feira, 20 de dezembro de 1995
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"Benjamim" se recusa a suscitar emoções

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Imagino que "Benjamim", o segundo romance de Chico Buarque, não tenha o mesmo sucesso de "Estorvo", alguns anos atrás. É conhecida a maldição que pesa sobre o segundo livro, quando o autor obteve consagração na estréia. Há vários motivos para isso.
Um motivo importante é que o público e os críticos já se esqueceram do primeiro livro quando vão ler o segundo. Ficaram apenas com uma imagem favorável, elogiosa; esqueceram-se dos defeitos.
Quando pegam o segundo livro, encontram coisas incômodas, têm menos paciência, suas expectativas eram exageradas; não sabem mais que, no primeiro livro, havia defeitos também, mas abafados pela impressão geral de que se tratava de uma obra-prima.
"Estorvo" era um romance muito bem escrito, duro na sua elegância, altamente literário. Este, aliás, é um outro motivo: no primeiro livro, o autor exagera, dá o máximo de si no estilo: quer provar que é bom. Põe no texto mais coisas do que é capaz de administrar. Resulta, no público, um impacto vago de maestria, tanto mais forte quanto mais houver obscuridades, pontos mal resolvidos no enredo: hesitações derivadas do excesso de talento, não da falta.
Não me esqueço, contudo, das críticas que foram dirigidas a "Estorvo", e eram justas: o enredo era pouco nítido, o final dava uma sensação de vazio. Chico Buarque procurou, em "Benjamim", superar essas dificuldades. A história se organiza bem, é exposta claramente, e o romance acaba do modo mais "acabado" possível.
Qual o problema, então, de "Benjamim"? Há muitos. Mas não estou pichando este ótimo livro. Em "Estorvo", constatavam-se "defeitos", passa-se, agora, ao plano mais ambicioso dos "problemas", ao passo que as qualidades, o talento de Chico Buarque como escritor não mais precisam ser enfatizados.
Parece-me que Chico Buarque procurou, em "Benjamim", organizar um enredo mais interessante e nítido do que em "Estorvo". Agora estamos às voltas com Benjamim Zambraia, modelo fotográfico em decadência, que é fuzilado na primeira cena do romance, e recorda, naquele momento, seu relacionamento com a bela Aricla Masé, uma moça que ele pensa ser filha de Castana Beatriz, sua antiga paixão nos anos 60.
Nomes estranhos, esses: Zambraia, Castana, Ariela. Há outros: um pastor Ozéa, um candidato Alyandro, o galã Zorza, o galã Jeovan. Em "Estorvo", eram raros os nomes próprios; mas, quando apareciam, eram igualmente estranhos: Osbênio, por exemplo, para não falar de um mesmo Ozéa.
Comentei esse gosto pelos nomes esquisitos na ocasião do lançamento de "Estorvo". Chico Buarque estaria expressando a estranheza, o exotismo, das camadas populares, tais como aparecem aos olhos da classe média-alta progressista. Não é mais o "João", o "Benedito", o "Custódio" serviçal e conhecido, humilde e "legitimamente" popular. Ou seja, não é mais o "povão" da cachaça, do violão, do barraco, com o qual a esquerda boêmia poderia se confraternizar.
Ao contrário, é um povo que se faz irreconhecível, alheio à esquerda partidona, surpreendendo-a em adesões evangélicas, enriquecimentos súbitos com o tráfico de drogas ou com a política. O lúmpen enriquece, enquanto o proletário não faz revolução.
Claramente há uma amargura em Chico Buarque, que não reconhece mais no "povo" aquele "povo" com que se solidarizava politicamente. Isso já estava em "Estorvo", mas sem um enredo consistente. Desta vez, em "Benjamim", a expressão dessa amargura se intensifica, e encontra um enredo mais fácil de seguir.
Ariela Masé é uma jovem proletária, interessada em seguir carreira de modelo, capaz de ceder aos encantos de um político endinheirado e lúmpen, Ayandro.
Benjamim Zambraia é um decadente, que teve o ápice do sucesso sexual nos anos 60, como qualquer sujeito de esquerda, está procurando o passado perdido. Castana Beatriz, sua paixão, foi morta após um sugerido envolvimento com a resistência ao regime militar. Benjamim Zambraia se dá mal.
A história do romance representa, de alguma forma, a impossibilidade de se recuperar o passado pré-64, e a inconfiabilidade das classes populares contemporâneas frente a qualquer projeto político autêntico.
Será que estou exagerando? A fraseologia a que recorro não é muito boa, é esquemática, pareço um dinossauro, mas estou convencido de que Chico Buarque é um belo dinossauro também, e que seria injusto reduzir seu romance a uma história de amor com toques policiais, ignorando o senso político que o inspira.
Bem, mas é aí que aparecem os problemas de "Benjamim". Do ponto de vista formal, Chico Buarque estava tentando arranjar o enredo que lhe faltava em "Estorvo". Do ponto de vista do conteúdo, Chico Buarque mostra mais claramente a sua sensação de um proletariado irreconhecível, traidor, mercurial.
O que acontece então? O enredo fica mais claro, o romance mais enxuto. Só que mobiliza personagens com os quais o autor não mantém nenhuma relação de simpatia.
Um estado de frieza e de distância quanto ao destino dos personagens atrapalha o cuidado do autor em fazer um roteiro de acontecimentos que dê conta do que acontece com eles.
O livro ganha um enredo, mas o enredo não mobiliza a simpatia do leitor. Prende a atenção mas se recusa a suscitar emoções. Seu protagonista, Benjamim, é fraco. Narra-se a obsessiva procura pela filha Castana Beatriz, num jogo de coincidências surpreendentes; é o acaso, ou melhor, a máquina inventada por Chico Buarque e não o interior dos personagens, o que movimenta o livro.
A frieza é certamente um efeito desejado pelo autor. Combina com o retrato de uma classe social incompreensível, decepcionante para quem tem expectativas de esquerda. Serve maravilhosamente sempre que Chico Buarque procura fazer a anotação precisa de um detalhe, de um rosto, de um trejeito, da decoração de um apartamento.
Mas o livro se sustenta basicamente pela sua trama policial. Coisa, aliás, que virou sinônimo de romance: "trama policial". É que só há senso de narrativa e de destino, hoje em dia, quando há um mistério, um investigador, um caso de morte.
O romance antigo girava em torno do casamento."Madame Bovary", "O Primo Basílio", "Middlemarch", "Dom Casmurro", são romances do casamento, numa época, o século 19, em que casamento era sinônimo de destino.
Extinta essa circunstância, sobra essa outra circunstância do destino, o assassinato. Os romances policiais são a sobrevivência, algo artificial, do gênero romance em nossos dias.
Como Chico Buarque queria fazer um romance, temos um romance com toques policiais. Nos detalhes do estilo, na precisão da frase, um livro impecável.
Um belo escritor, Chico Buarque, cede a imperativos do romance à Rubem Fonseca. Este, na verdade, seria o mistério a explicar.

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