São Paulo, quarta-feira, 20 de dezembro de 1995
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Além dos escândalos

ANTONIO KANDIR

Além de rigorosa e exemplar apuração, os casos "Sivam" e "pasta rosa" exigem análise que vá além do episódico. Que razões de fundo estariam por trás deles? Obedeceriam à mesma lógica? Que lógica seria essa? São questões que remetem ao problema das condições de governabilidade num momento importante do processo de reformas estruturais e, como tais, precisam ser enfrentadas no plano da interpretação e da ação política.
Embora com epicentros e características distintos, os episódios recentes não são casos isolados. Não porque façam parte de uma trama conspiratória -hipótese inteiramente fantasiosa. Mas sim porque apontam para problemas estruturais da governabilidade e conformam, cada um a seu modo, um padrão de disputa política perigosamente predatório, tanto mais porque acompanhados de sinais de desgaste pessoal e autofagia dentro dos círculos decisórios mais importantes do Executivo e de acirramento na disputa entre os maiores partidos pela maioria na Câmara, vale dizer, pelo controle do processo legislativo.
Em última análise, o conjunto de episódios recentes -ao qual se poderiam agregar outros mais distantes, como a demissão de José Milton Dallari- reflete o problema da decomposição institucional do Estado brasileiro, processo que remonta à crise do regime autoritário e que tornou fluidos os espaços e hierarquias de mando e criou focos de poder relativamente autônomos dentro do setor público.
A superposição de um quadro institucional desse tipo a um quadro partidário cujas características também conhecemos, num momento em que as reformas começam e precisam ser aprofundadas, tornam fundadas as preocupações sobre os desdobramentos das "perturbações ambientes" surgidas neste final de ano.
Em todo processo de reformas há o risco de desatarem-se disputas de poder predatórias, isto é, disputas que funcionam segundo a lógica do "máximo dano possível" e tendem a subverter toda regra ou consideração que se ponha como limite à consecução desse objetivo. O risco é tanto maior quanto mais frágil o quadro institucional em que as reformas são efetivadas. Se isso é verdade, deve-se considerar a hipótese de que os episódios representem o início de uma sequência potencialmente mais longa.
As reformas (o conjunto delas e não apenas as de natureza constitucional) estão provocando e vão provocar uma importante redefinição de forças. Importante, pois afeta posições estratégicas de poder e porque pode ser duradoura, à medida que a nova forma de organização interna e implantação do Estado na sociedade venha a se consolidar.
Essa redefinição de forças afeta diretamente o poder de lideranças políticas e segmentos diversos da burocracia pública, em suas relações recíprocas e com grupos sociais diversos. Nesse processo haverá quem perca e quem ganhe poder. Por tratar-se da definição de uma nova ordem, as perdas relativas de poder não serão facilmente anuladas mais à frente, o que é percebido pelos protagonistas e eleva o potencial de conflito da disputa política. Isso vale tanto para as disputas que se dão à luz do dia, protagonizadas por instituições do Estado, como também para as disputas subterrâneas, que envolvem mais diretamente pessoas, pedaços da burocracia, pedaços dos partidos e grupos privados.
Para projetar desdobramentos, as questões mais relevantes são: 1) até onde pode ir esse processo de proliferação de disputas predatórias, que se cruzam e se potenciam mutuamente?; 2) quais os anteparos à sua propagação, qual a capacidade política e institucional de detê-la? Em tese não é difícil dizer onde esse processo pode chegar. A propagarem-se, as disputas predatórias acabarão por resultar em paralisia decisória no Congresso e perda de eficiência das políticas relevantes para o processo de estabilização. Esse é o risco-limite.
Quanto aos anteparos, os de natureza institucional, que se impõem como que por si mesmos, são frágeis por definição (já que a fragilidade institucional é elemento constitutivo do problema). Por isso os desdobramentos dependem de modo crucial da percepção que os protagonistas têm do problema e de sua capacidade propriamente política de restabelecer um jogo de coordenação e convergência. Pelas características da cultura política e do sistema político, os desdobramentos dependem muito especialmente da capacidade política da Presidência da República.
Capacidade para fazer exatamente o quê? Em poucas palavras, restabelecer os termos da disputa política, dentro do Executivo, no Congresso e entre instituições do Estado e preparar o governo para levar adiante o processo de reformas num quadro em que a tendência à generalização da disputa predatória estará presente.
Isso implica, de imediato, um conjunto de coisas nada trivial: 1) engajar o ministério na defesa do governo; 2) arbitrar o conflito entre instituições do Estado, notadamente entre o BC e o Congresso; 3) arbitrar a disputa pela maioria na Câmara, de modo a minimizar disputas autofágicas dentro da base de sustentação do governo no Congresso; 4) preparar o governo para enfrentar reações mais que previsíveis contra as reformas que despertam o antagonismo de corporações do setor público.
Dependendo da maneira como esses problemas forem ou não resolvidos, a realidade poderá aproximar-se mais ou menos dos seguintes cenários extremos: 1) um cenário de entropia do poder e paralisia decisória; 2) um de "refundação" do governo, que lhe empreste um grau de coordenação estratégica e competência na gestão política capaz de compensar a fragilidade institucional.
O capital político acumulado com a estabilização, a continuidade assegurada no médio prazo de taxas muito baixas de inflação, o prestígio pessoal do presidente e os riscos percebidos pelas forças políticas e em especial por lideranças em posição institucional-chave tornam muito pouco provável situações próximas ao cenário de entropia e paralisia decisória.
Mas uma coisa é certa: o governo de Fernando Henrique vive um "turning point" -por conta da dinâmica das reformas e dos problemas políticos reiterados neste primeiro ano de mandato- e pode sofrer desgaste continuado e crescente se não responder a contento ao desafio de impedir que se torne sistêmica a disputa predatória e a autofagia.

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