São Paulo, sexta-feira, 22 de dezembro de 1995
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Pecados capitais se intensificam no Natal

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A luxúria, talvez não. Mas todos os outros pecados se intensificam no Natal. Nem preciso falar da gula: o empanturramento é tamanho, que no final da ceia as nozes, castanhas e o panetone já têm um sabor de penitência.
O papa João Paulo 2º bem que poderia lançar uma advertência a seus fiéis no que toca a abusos nessa área. Valeria, ao menos, algum anátema contra o chocotone. Experimentei outro dia essa corrupção detestável do velho panetone, mistura sacrílega de Páscoa e Natal num mesmo produto. Está a exigir algum clamor pastoral; mas a Igreja só pensa em sexo, de modo que o comércio do chocotone corre solto.
Mas a gula, afinal, é um pecado menor. Orson Welles, numa entrevista, explicou por quê. A gula, bem ou mal, é uma coisa afirmativa: representa uma aceitação enfática do universo, junto com a luxúria, certamente, mas a luxúria envolve algum desprezo pelo objeto do desejo, o minimizar de suas características individuais. Ao passo que um vatapá, um tender made, um leitão com fios de ovos, não exigem grande respeito pessoal.
Devorêmo-los, então. Mas quanto aos outros pecados? Praticamente todos estão presentes nesta data cristã. Vejo-me culpado de avareza, quando calculo o quanto vou gastar com cada parente. De ira, num congestionamento de shopping center. De orgulho, se me dão um presente indigno de mim. De inveja, claro.
Mas o principal é a preguiça, que me obriga a fazer compras de má-vontade, à última hora, e de atrasar ao máximo os compromissos sociais inspirados pela data.
Não são apenas as comemorações familiares. Em dezembro, todos se lembram uns dos outros, e a quantidade de reuniões amigáveis é exaustiva.
O pecado da preguiça faz com que até agora eu não tenha feito as compras que deveria. Mas, pelo que tenho visto, este Natal está com menos congestionamentos de trânsito, está menos frenético do que os anteriores.
Curioso, porque as notícias são de que tudo está mais barato do que no ano passado.
Matematicamente, o consumo não pode estar menor. Talvez a estabilidade nos preços tenha trazido uma certa estabilidade psicológica, uma precaução, uma virtude no consumidor. Talvez o consumidor esteja com falta de tempo para fazer compras, porque se vê obrigado a trabalhar demais. Talvez já estejamos no Primeiro Mundo.
Mesmo com toda a preguiça, vou notando que em geral, nas lojas, nas ruas, nas casas, este Natal está mais bonito do que nos anos anteriores.
Topei até com um supermercado de enfeites natalinos. O número de lâmpadas acesas bate recordes. Há coisas baratas e lindas para comprar.
A moda das lampadazinhas brancas, em vez daquelas multicoloridas, cobriu as árvores de São Paulo. Fica melhor. Com o sistema de importações livre, até na feira você encontra presentes bonitos. Vi uma peça de cristal (?), que, sem ironia, era muito bonita, por dez reais.
Fiquei sabendo também de uma máquina que produz cartões natalinos em papel vegetal. É uma idéia de gênio. Pois, desde os tempos de escola, sabemos que o papel vegetal, quando dobrado, cria vincos brancos. A máquina explora esse esbranquiçamento do papel vegetal para produzir a ilusão de um trabalho de renda, da toalha rendada, em recortes, chanfrados, debruns, festões, floreios de brancura corroendo a superfície acinzentada e transparente do papel; como um Natal sobre a mesmice dos dias.
É bonito; ou, precisamente, "bonitinho". Entro aqui no assunto mais sério deste artigo, a saber, o da volta de uma estética "antiquada na sociedade contemporânea, a qual a época natalina favorece fortemente.
Há uma moda do "antiguinho", do "bonitinho", do decorativo, do rosado, do rendilhado, nos dias que correm. As embalagens de chá importado investem no campestre, no vitoriano. As revistas de decoração se especializam no estilo "country". Patinhos de cerâmicas, babados no abajur, estampados de florzinhas.
Não há caixa de balas que se preze que não tenha camafeus vitorianos. Frascos de perfume lembram os caprichos da vovozinha. A quantidade de produtos "retrô" é enorme nos supermercados. Biscoitos dinamarqueses inspirados nos contos de Andersen.
Tudo é muito embrulhadinho, decorado de azevinho e de cerejas, o verde escuro dos pinheiros se enfeita de fios dourados, e com isso voltamos ao passado, ao século 19.
Esse "bonitinho" do Natal encontra várias razões para existir. Primeiro, claro, a referência deturpada à tradição. Mas também o esgotamento do projeto modernista.
Penso nas utopias de Le Corbusier, por exemplo: um mundo de pureza de formas e de racionalidade perfeita, capaz de transformar o cotidiano dos homens. Hoje é fácil perceber o quanto a ascese arquitetônica de Le Corbusier e do Bauhaus tinha a ver com a utopia totalitária de um "mundo novo", sem superfluidades, puramente funcional, numa palavra, "moderno".
Esse "moderno" acabou. Não por uma questão de moda, mas porque trazia em si uma contradição básica. Confiava numa coisa: a idéia de que a produção industrial da massa, mais econômica e racional, eliminaria por si só o ornamento, a superfluidade, o "bonitinho do século 19, em favor de uma estética mais pura, mais rígida, mais econômica.
O erro desse modernismo -o de Le Corbusier, o de Bauhaus, de Mondrian,- foi o de não perceber que a produção de massas, o industrialismo, não era apenas o triunfo do "racional" contra o supérfluo. O supérfluo, na verdade, é a verdadeira força motriz da sociedade de consumo. A racionalidade modernista se rende aos encantos do século 19, aposta em duendes e fadinhas, à medida que o consumo é por essência irracional.
Entrega-se ao "bonitinho" porque é isso mesmo o que é "supérfluo". A sociedade de consumo vive o paradoxo de uma produção em série que só funciona quando atende a necessidades irreais. A racionalização da esfera produtiva convive com a irracionalidade dos desejos do consumidor. Desejos administrados pela propaganda.
Não há ascese, portanto, num mundo totalmente racionalizado pela produção em série. Máquinas produzem rendilhados em papel vegetal. Duendes, fadinhas, lendas, embelezam o Natal consumista. O modernismo se esfalfa, exausto, numa embalagem de chá "natural", vingança do "bonitinho" contra o século 20, vingança lucrativa, apesar de tudo. E encantadora em sua irracionalidade administrada.

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