São Paulo, sábado, 23 de dezembro de 1995
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Brasil tem Carandirus mas não duelos

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Hoje em dia se pesquisa tanta coisa entre nós, que me pareceu estranho não ter encontrado nada sobre o duelo no Brasil. Será que houve tão poucos assim? Eu só sei de dois, ligados ambos ao "Correio da Manhã". No segundo deles fui até personagem. Quer dizer, tesconjuro, duelista não. A verdade é que Álvaro Lins e eu fomos os padrinhos de Paulo Bittencourt, diretor-proprietário do "Correio", quando o então senador Juraci Magalhães, ofendido pelos ataques que sofria no jornal, desafiou Paulo para um duelo.
O fundador do "Correio da Manhã", Edmundo Bittencourt, pai de Paulo, fora igualmente desafiado para o que também se chamava um combate singular. Foi no princípio do século e o local do confronto foi o areal da praia de Copacabana, que naquele tempo não ostentava os coqueiros que lhe dão um vago ar de estilização do Nordeste. Era uma selvagem praia eriçada de cactos, pitangueiras e cajueiros. Naquelas solidões trocaram tiros de pistola Edmundo, que provavelmente jamais vira de perto uma arma de fogo, e seu desafiante, o caudilho Pinheiro Machado, íntimo de todas elas. Além de ter lutado, muito moço ainda, na guerra do Paraguai, foi herói da Revolução Federalista e ganhou título de general honorário. É claro que quem saiu baleado no duelo foi Edmundo Bittencourt.
Quanto ao duelo de Paulo com Juraci Magalhães, este não se realizou nunca. Paulo foi taxativo. Achava ridículo um duelo em 1955. Acabaram se enfrentando os dois com os punhos dentro do Museu de Arte Moderna do Rio. Por gosto de Juraci a coisa seria duelo mesmo, e, no salão da direção do "Correio", Álvaro Lins e eu tivemos um encontro formal com os padrinhos do desafiante, senadores Daniel Krieger e Dinarte Mariz. Mariz, que era do Rio Grande do Norte, tinha tanto jeito para a coisa quanto eu ou o Álvaro, e tendia a encerrar saudações com um tapinha no ombro. Mas Krieger, que era do Rio Grande do Sul e tinha esse nome aguerrido, falava no iminente duelo como coisa grave mas naturalíssima. Não gostou nada do que lhe dissemos nós, padrinhos de Paulo, sobre a recusa terminante do duelo e a contraproposta feita a Juraci de uma troca de murros e tabefes quando se encontrassem. Mas foi isto que ocorreu, como ficou dito acima, no MAM. Nada do vermelho de pitangas e sangue na areia de Copacabana, entre cajueiros, e sim o engalfinhamento de dois senhores robustos entre os pilotis do MAM. O museu não era ainda o lindo edifício construído pelo Reidy. Vivia por assim dizer entre as pernas do então Ministério da Educação, de Le Corbusier, Niemeyer, Lúcio e outros.
Fico pensando nos duelos de outros tempos quando vejo o outro Magalhães que temos hoje de plantão, o Antônio Carlos, xingando os membros do Banco Central de marginais e o Ângelo Calmon de Sá de ladrão. Antônio Carlos não é parente de Juraci -que, apesar de ter sido interventor na Bahia, nasceu no Ceará- mas apresentam semelhanças temperamentais marcantes, na violência com que enfrentam desafetos e no neoliberalismo arraigado que pregam. Os dois, aliás, lembram o duelista Pinheiro Machado na paixão com que exercem o mandonismo político. Que ACM nunca tenha desafiado ninguém para um duelo dá, de certa forma, razão a Paulo Bittencourt: duelo já era. Mas que ACM deve sentir saudades pungentes do tempo em que se desafiava um adversário político saliente com uma boa luvada de couro na cara, lá isso deve.
E, antes de encerrar o assunto, lembremos que os neoliberais, tão triunfantes e tão à vontade agora, continuam devendo um monumento ao patriarca, ao outro Magalhães, Juraci, que acabou criando uma espécie de lema para nossa bandeira, já que o ordem-e-progresso não nos levou muito longe: "O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil".'
"Dolly"
Pego o mais recente livro de Lygia Fagundes Telles, "A Noite Escura e Mais Eu" (Nova Fronteira) e, como quem dá um fundo gole no vinho que acabem de nos servir, li logo o primeiro conto, "Dolly", a história de uma moça que foi à Barra Funda, de bonde, buscar uns cadernos esquecidos na casa de outra moça, Dolly. O conto se passa há tanto tempo que o cinema ainda era mudo, mas a terrível história contada pela moça que buscava os cadernos se refere, já então, ao mal que tanto nos persegue hoje. A crueldade atualiza "Dolly", que evoca um comediante do cinema americano dos anos 20-30. A narradora só se lembra do apelido "brasileiro" que teve esse ator gordíssimo, Chico Bóia. Ele se chamava Arbuckle e os americanos o alcunharam Fatty Arbuckle. Assassinou um dia uma mulher com requintes de crueldade sexual. Não fez mais filmes de Chico Bóia e seu caso foi um dos que levaram à criação do Hays Office, de censura cinematográfica.
No conto de Lygia não sabemos quem terá sido o assassino. Apenas vamos a linda Dolly morta, estuprada, a garrafa ensanguentada. Não sabemos também o que terá levado ao crime. Ou, melhor, sabemos que o motivo foi "um só, a crueldade, a crueldade, a crueldade".
Saudades
O livro "Magma" só não sai porque os herdeiros de Rosa não querem. Assim como os herdeiros de Di Cavalcanti não deixam que o povo veja o funeral de Di, que Glauber Rocha transformou em faraônica arte fúnebre. Que famílias mais chatas.
A carta de Hygia me lembra ainda que dia 28 de dezembro de 1992 morria Otto Lara Resende. E transcreve trecho de carta dele, de julho daquele ano, em que Otto lhe explica por que adiou crônica que havia escrito sobre a tese "Magma" de Hygia. Disse Otto: "Li o (Antonio) Callado, claro. E até lastimei que tivesse escrito, e logo na Folha, o que me botou para corner". Só posso dizer a Hygia que espero que o Rosa, lá no assento etéreo aonde subiu, me perdoe esse corner.
Nota: Já pronto este artigo, vejo que a família de Guimarães Rosa promete publicar, para breve, "Magma".

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