São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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AMÉRICA NUESTRA

GLAUBER ROCHA
SEQUÊNCIA 1

Planos aéreos dos Andes (fusões). Planos aéreos das regiões latinas. Montanhas. Desertos. Mares. Amazônia. Sobre estes planos, os letreiros. Música. Câmera se aproxima de uma cidade -relevar seu aspecto colonial.
Legenda: Eldorado, país descoberto e colonizado pelos ibéricos, fonte de grandes riquezas minerais, proclamou sua independência no século 19; livre, acompanhou o progresso, forjou sua raça de brancos, índios e negros; solidificou o conceito de Nação; erigiu a democracia; proclamou a liberdade!
Sequência 2
Um canhão dispara; aviões no ar; movimento de tanques; deslocamento de tropas. Planos rápidos, expressivos.
Sequência 3
Legenda: Depois da última revolução, Manuel Diaz, líder civil, assume a Presidência.
Sequência 4
A festa. Banda de música desfila. Num carro aberto, sob papel picado, Diaz atravessa a grande avenida. O povo saúda das janelas. Grande desfile. Aviões no ar.
O grande portal do palácio; Diaz penetra, sempre aclamado; tem uma metralhadora na mão. No salão, diante das câmeras de TV. Foi evitada a presença do povo. Alguns repórteres.
General - Falaremos ao povo através da televisão, que é um instrumento moderno.
Diaz chega. Há um silêncio.
General - Pelo presente ato adicional ficam abolidas as províncias, que passam a integrar o poder central; ficam banidos da vida pública todos os radicais de esquerda; determina-se o fechamento da Universidade Central, foco de subversão; ficam abolidas as eleições; reatamos nossos laços de amizade com nossos fraternos irmãos do Norte; ficam regulamentadas as leis de imprensa. Através destas medidas, depois da nossa Revolução, pretendemos iniciar rapidamente o processo de redemocratização do país, que estava entregue à desmoralização econômica e cívica! Proclamamos presidente o sr. Manuel Diaz!
Sequência 5
Diaz é levado nos ombros até um palanque, com grande aclamação. Há uma cruz no palanque. Um cardeal vem celebrar a missa. Diaz recebe a hóstia consagrada. O povo em silêncio. Depois, um coral sacro. Diaz recebe a faixa presidencial. Diaz tem os olhos incendidos de misticismo, de fanatismo. Diaz fala ao povo.
Diaz - Eu quero uma sociedade justa, onde o homem pobre possa receber casa e educação sem a necessidade do ódio que os inimigos da democracia fazem questão de espalhar entre as classes. Desde tempos imemoriais, desde os tempos da Bíblia, os homens estão divididos em classes e nunca a virtude de um homem foi medida pela classe à qual ele pertence, mas sim pelos valores espirituais e morais de cada homem. Jesus Cristo era filho de carpinteiro e era igualmente soldado de Deus!
Eu quero um programa de felicidade para meu povo, não só para o povo do Eldorado, mas para todos os povos da América. Nesta trilha segui e nesta trilha fui ferido; três vezes fui expulso do Senado, três vezes fui preso, três vezes ressurgi e fui eleito, pois o povo confiava em mim, o povo me dava sua bandeira para representá-lo. O povo me escolheu porque sou o mais lúcido e inteligente!
O que eu não posso explicar aos meus inimigos são as razões que me levaram a abandonar o exercício da solidão pelo exercício público; mas também nem Cristo pôde explicar, a não ser com sua própria vida; assim, eu responderia aos meus inimigos que Cristo deu a vida pelo povo, quando os exploradores do povo quiseram que ele compactuasse com a exploração! Morreu, mas não traiu!
As minhas ambições são puras. Se hoje, do coração desta praça de Eldorado, proclamamos a fundação de uma nova república livre é porque estamos reafirmando o espírito dos grandes libertadores do passado, Juarez ou Bolívar; e reafirmando o que amanhã promoverá a grandiosidade do nosso continente, o poder mais forte entre todos, mais alto e poderoso, mais do que pode a força humana, o poder de Deus, a voz do homem!
O povo, que tudo ouviu em silêncio, explode em carnaval.
Começam a cantar uma canção patriótica, mais ou menos nestes termos:
Conquistaremos o céu, a terra e o mar.
Por perigos terríveis havemos de passar.
A terra da esperança um dia se verá
Havemos de chegar!
Havemos de chegar!
À terra das palmeiras que mais verdes estão lá!
Diaz, no palanque: fecha os olhos; olhando para o céu como agradecendo a Deus o fato de ter chegado ao poder. Vozes. Coro.
Sequência 6
Noite. Câmera se aproxima da casa-castelo afastada, na selva ou na montanha.
Legenda: Num gesto humanitário, Diaz não fuzilou seus inimigos. Júlio Fuentes, o capital que tudo domina, lamenta a perda do poder. Funeral das esperanças.
Dentro da casa, uma verdadeira orgia.
Júlio Fuentes, um playboy de 40 anos, aproximadamente; tem cabelos brancos e compridos: é ligeiramente homossexual; diz palavras entrecortadas de termos ingleses (serão escritos no diálogo final).
Aqui está reunida a essência daqueles que foram depostos: os radicais histéricos, os aventureiros, os estudantes, sacerdotes inclusive -representados pelos protótipos, embora os protótipos desmintam o esquematismo. É desta dialética, uma estrutura esquemática versus o antiesquematismo dos personagens, que viverá o drama.
Presente está Juan Morales, o poeta. Ele representa a dualidade intelectual latina entre o romantismo e o racionalismo. O retardamento romântico e a impossibilidade racional o levam a um troca-passo contínuo, cujo resultado é um "neo-surrealismo". Eis a tônica estilística da fábula. Nos corpos, a expressão transida do subdesenvolvimento.
Movimento contínuo, todos falam, delírio em crescendo, disciplinado.
Júlio - Funeral das esperanças: por água abaixo todo um trabalho de anos, todos os sonhos de uma geração.
Padre - O que aconteceria se Cristo novamente voltasse? Seria da mesma forma crucificado. Nestes desertos, bem que novos Cristos poderiam nascer para morrer como líderes autênticos.
Jerônimo - (líder operário) Eu bem dizia, eu bem dizia: ninguém me acreditava e não era função minha explicar estas coisas. Eu presidia meu sindicato, estava na luta de classes, mas bem dizia que o presidente terminava caindo. Todo presidente que protege operário cai.
Júlio - Brindo ao fracasso, brindo à queda do nosso presidente Fernandez, digno representante do povo. Onde está Fernandez?
Sílvia - (grã-fina, amante dos grandes) Fugiu para Nova York com todo seu séquito de ministros e mulheres. Levou três milhões de dólares em ouro e jóias.
Júlio - Brindo à frustração de Sílvia, que foi esquecida por Fernandez na hora da queda.
Surge Juan no meio da confusão, cabelo grande de poeta, camisa branca aberta, indignado.
Juan - Eu me recuso a brindar, porque tamanha vergonha não merece nada, talvez nem mesmo comentários. Fernandez deu prova da maior covardia de que já tive notícia em todos os anos de Eldorado. Se tivesse ido ao povo e gritado "POVO!", não teria caído. Preferiu fugir antes do grito, teve medo de derramar o sangue dos inocentes. Que inocentes? Que inocentes? Esta gente pobre, feia, suja, descarnada?
Júlio - O poeta se levanta indignado da derrota! Fernandez era um covarde!
Jerônimo - Amigo dos trabalhadores!
General - Estadista frustrado!
Padre - Ateu! Foi o ateísmo! E mais, os Judas. Judas enforcou-se nu. Nu!
General - Teremos de abrir florestas, lançar estradas, construir pontes, fundar a Universidade Andino-Amazônica! Somente assim, somente assim! Eu dizia todos os dias a Fernandez, mas ele não ligava, ele ouvia apenas os radicais.
Sílvia - Foi tudo tão triste!
Sequência 6A
Muda o tom no corte, muda o ritmo. Sílvia dança na mesma sala com Juan, num tom romântico.
Sílvia - Vocês prometeram pão e terra.

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