São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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AMÉRICA NUESTRA

GLAUBER ROCHA

Juan - Era o bastante para que o povo fosse feliz.
Sílvia - A sua loucura, Juan, não estava apoiada em nada.
Juan - Os meus amigos se suicidaram de desespero.
Sílvia - Diaz tem grande admiração por você. Ainda há uma chance.
Juan - Não, o que me espera é justamente o que detesto: o programa certo, o salário fixo. Eu não quero isto, Sílvia, eu não quero isto: a vida não é um jogo de xadrez, a vida é uma aventura!
Sequência 6B
Volta o clima da festa de Júlio.
Agora não estão os vencidos, estão algumas mulheres lindas e uma orquestra afro-latina. É uma bacanal.
Júlio - Já que fomos vencidos e já que fomos poupados; já que Diaz garante a paz aos trabalhadores e a bomba atômica ameaça o mundo, eu proclamo o estado de alegria permanente em Eldorado. Com esta música e este vinho, saudamos Juan Morales, poeta e patriota!
A festa desesperada. Todos dançam loucamente. As mulheres seminuas. Há umas sete pessoas em cena. Depois a festa pára. Estático.
Júlio - Quantos dias passaremos a cultivar nossa frustração? Eu, Júlio Fuentes, sou um homem rico. Não sou intelectual nem político, eu não tenho nada com isto. Eu sou livre, Juan, seja livre como eu. Olhe, olhe os seios de Sílvia.
Sílvia dança com os seios quase de fora, transcendente.
Juan - Mas tudo o que você tem não lhe pertence. Não sente que pode um dia acordar pobre, com os invasores nas praias? Não teme o futuro? Não sofre pelos seus pobres irmãos prisioneiros dos desertos?
Júlio - Não sofro por nada, Juan. Sofro pelo amor, pela infância; ah! Sílvia...
Plano de Juan, que dança com Sílvia, sensualmente. Plano de Júlio, que dança com outra mulher, sensualmente. Os dois se cruzam na dança.
Sequência 6C
Na sala vazia, sem música, as mulheres nuas, cobertas pelas toalhas. Diálogo de Juan e Júlio.
Juan - Vou partir
Júlio - Para onde?
Juan - Para as montanhas, para o mar.
Júlio - Voltará quando?
Juan - Se vocês tivessem coragem, você, os outros. Mas não, são homens lúcidos... Ah! os lúcidos.
Ando pelas ruas e vejo o povo
Magro, apático, abatido
Este povo não pode
acreditar em nenhum partido!
A poesia não tem sentido... palavras... as palavras são inúteis. Arrastam um poeta para o cárcere, metem uma granada na boca do poeta!
Voltar? Não sei... Não há outro caminho senão fazer política, já que a poesia nada resolve e a revolução é impossível.
Júlio - Esperarei aqui a marcha dos acontecimentos. Adios, amigo!
Juan - Adios!
Sequência 7
Legenda: O poeta parte para a montanha e mar
para amar e meditar.
Travelling para uma velha região perto do mar, montanhas ao fundo, ou vice-versa. Música cantando as belezas da terra. Dentro do carro, Juan. Uma aldeia onde chega Juan. A jovem amante, Amor, musa de Juan.
Sequência 7A
Num barco no meio do mar.
Juan - (recitando ou cantando)
Não anuncio cantos de paz
Nem me interessam as flores do estilo
Como por dia mil notícias amargas
que definem o mundo em que vivo.
Sequência 7B
Juan, passeando pelas montanhas, Amor ao lado:
Não me causam os crepúsculos
A mesma dor da adolescência
Devolvo tranquilo à paisagem
os vômitos da experiência
Sequência 7C
Juan anda pelas montanhas:
Transito nos Andes e pergunto:
- Qual a solução?
O Camponês me responde:
- Granada, irmão.
Sequência 7D
Juan no mar, veleja com Amor:
E acordo no mar
Sem nada no peito
Sem granada na mão.
Sequência 7E
Juan na aldeia, frente a um velho, face de pedra:
Os velhos sábios me dizem
Que é preciso saber esperar.
A miséria é um destino
Que um dia Deus mudará.
Sequência 8
Juan. paisagem bucólica. Com Amor.
Juan - Eu queria me casar, criar gado à beira dos regatos, olhar cada dia o nascer do sol sobre as verdes colinas, misturar nossos filhos aos filhos dos outros, crescer no mundo.
Amor - Você agora é outro homem, Juan. Onde está o bicho selvagem que saiu dessa aldeia para fazer de Eldorado o país da justiça? Parece que faz muito tempo, mas foi ontem, eu nem senti os anos.
Juan - Voltei derrotado. Não sou mais o bicho selvagem, estou ferido. Não valho mais nada.
Amor canta uma canção.
Sequência 8A
Travelling. Entram por uma velha igreja.
Juan - O que Deus me deu? O que Deus me deu?
Sequência 8B
Casa, comem. A casa de Amor é pobre, subdesenvolvida. Juan. Camponeses.
Pai - Sempre prometem pão e terra. Há 30 anos ouço as promessas. Não acredito em mais nada. O presidente Fernandez prometia pão e terra. Depuseram o presidente Fernandez. Agora o presidente Diaz promete pão e terra, mas nunca darão pão e terra. A mim não me interessa liberdade sem pão e terra.
Amor. Juan. O Pai.
Sequência 9
Campo. Vem um menino anunciando, montado num jumento. Menino canta:
Bolívar,
lobo das montanhas,
com a metralha na mão
anuncia para todos
o dia da salvação.
O Menino passa cantando. Um velho cego canta adiante.
Nasceu das estrelas
com a metralha na mão
anuncia para todos
o dia da salvação.
Sequência 9A
Na praça, Juan e Amor perguntam ao menino.
O menino responde.
Menino - Eu vi Bolívar, olhos duros, testa de urso, cabelos grandes, barba de Deus. Estava sozinho, trazia uma metralha, anunciava o dia da libertação. E não falava em nome de nada. Falava, sim, em nome do povo.
Sequência 9B
Travelling entre árvores, bosque. Juan caminha com Amor atrás. Música intensa de violões.
Sequência 9C
Varanda, rede. Um carro elegante parado. Um homem espera. Juan lê uma carta. É uma carta de Júlio Fuentes. Amor presente. Travelling. Juan lê os últimos trechos.
Juan - "... e temos de contar com a sua participação nesta luta contra os sonhos ditatoriais de Diaz. Urge uma guerra pela imprensa, uma campanha de esclarecimento popular. Enquanto houver um resto de liberdade de imprensa, lutaremos. Responda. Abraços estremados do seu, Júlio".
Juan se levanta e se dirige ao homem.
Juan - Diga a Júlio que preciso de mais tempo para responder.
Sequência 10
Juan está novamente no mar, dentro do barco, com Amor. Se possível, haverá pescadores locais por perto. Pesca. Um ambiente. Amor está triste. Juan a interroga.
Juan - Você não está feliz. Desde que voltei, você não é mais a mesma.
Amor - Eu já lhe disse, naquele dia, no lago...
Juan - O bicho selvagem? O bicho ferido?... Meu amor, eu me sinto tão melhor aqui.
Amor - Aqui não é o seu lugar. Nós somos pessoas que vivemos do campo e da pesca e pensamos que vivemos felizes, apesar do sofrimento de cada manhã, que aumenta as marcas em nossa carne. Estamos cada dia mais gastos e tristes e não percebemos. Estamos dormindo. Por isto, aqui, lugar de sono, não é o seu lugar. Também não é nas montanhas, onde está Bolívar. É nas cidades, onde você se educou, é nos jornais, onde você escreve.
Sequência 11
Uma feira popular, ou coisa que o valha. Mercado, Juan entre rostos de camponeses conhecidos. Em seu rosto, a revolta. No som, os ritmos de guerra.

Continua à pág. 5-6

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