São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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filho da outra Madonna

MARILENE FELINTO

Madonna, a cantora americana, 37, guardou para perto do Natal o anúncio de sua vontade de ser mãe e a intenção de formar uma fila de garanhões, candidatos a terem seus dentes (ou outros órgãos) palpados, observados e examinados no processo de seleção do reprodutor que sirva para o cruzamento com ela -égua puro sangue. "Estou quebrando todas as regras que não criei", ela professa em uma de sua músicas.
A cantora disse em entrevista à rede de TV americana ABC que quer ser mãe e estaria disposta a pôr anúncio nos jornais "The New York Times" e "Village Voice" pedindo para que homens se candidatem a pai de seu filho. Jogada de marketing ou atitude desesperada (bastante improvável no caso) de mulher à beira dos 40, e no limite da fertilidade, seja como for, a idéia não é de todo má (nem de todo nova) -para quem não tem medo de sair por aí transando com cavalos.
Personificação da revolução sexual feminina impulsionada nos anos 60 e concretizada em parte hoje, Madonna talvez esteja falando sério. Se estiver, e for às últimas consequências, trata-se de postura radical contra as formas de convivência e comportamento social institucionalizados: a mulher como aquela que é escolhida (receptora e passiva), a família, a igreja, o Estado etc.
Trata-se, por um lado, de reduzir o sexo a sua função básica: a procriação pura e simples, sem casamento e, ao que tudo indica, sem paixão. Eliminados, portanto, o confronto de personalidades e a conveniência burocrática do casamento, além da "dura labuta necessária para alimentar bocas esfaimadas". Eliminados também os tormentos e as agitações do sexo apaixonado. Tudo clean e cool, para usar duas palavras em voga no mundo asséptico da pós-modernidade, da fecundação in vitro ou da gravidez de aluguel.
Ao escolher seu parceiro de acasalamento por um processo de seleção avançadíssimo -que utiliza técnicas da mídia, digamos, e talvez recorra aos recursos da genética-, Madonna estaria transferindo para a mulher o direito ao flerte cavalar e à escolha: ela se comporta um pouco como o homem que furtivamente mede bundas de mulheres na rua, vendo em qual delas será melhor ele penetrar. Com a diferença de que a estrela pop propõe fazer isso às claras, estampando anúncios em jornais.
Flerte cavalar e sexo com cavalos são aqui expressões metafóricas para o sexo nu e cru, sem os artifícios e os psicologismos em geral atribuídos à personalidade feminina, dita mais "romântica" e monogâmica.
Exercício de ontogenia transformado em ritual de mídia, a proposta de Madonna não deixa de ser (por outro lado) uma nova versão do "comunismo sexual" ou da "promiscuidade primitiva", para usar termos do questionamento do antropólogo Malinowski sobre os aborígenes australianos. É o mesmo comportamento transplantado para a "democracia sexual" pós-moderna: a escolha individualizada racional, quase científica.
Madonna tenta deslocar o centro do materialismo biológico, reinventar laços de parentesco e consaguinidade ou simplesmente achar um homem que não seja um cretino parte mais difícil, como ela disse. Talvez esteja no caminho certo, esse de experimentar cavalos. Afinal, como diz Rousseau, o único dos sentidos humanos em que não há qualquer elemento moral é o paladar.

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