São Paulo, quinta-feira, 28 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Le Prince pode ter inventado o cinema

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Cinco anos antes do primeiro trem do cinema chegar à estação de Ciotat, sob a mira da câmera dos irmãos Lumière, outro, não menos importante historicamente, deixou a cidade de Dijon em direção a Paris levando entre seus passageiros um sujeito de que você, prezado leitor, talvez nunca tenha ouvido falar: Louis Aimé Augustin Le Prince. Pena, pois há quem acredite que foi ele, e não Thomas A. Edison ou os irmãos Lumière, quem de fato inventou o cinema.
Ou quase isso. Inventos, de modo geral, não são frutos de uma só mente e dois braços, mas o somatório de descobertas e avanços técnicos engendrados por mais de um gênio. O cinema não foi uma exceção. Para existir, precisou de mecanismos específicos, películas, lâmpadas de arco voltaico, bobinas, obturadores e outras criações avulsas. Sem as experiências com imagens desenvolvidas por Muybridge, Marey, Anschutz, Reynaud & cia., Edison e os Lumière não teriam chegado tão cedo aos seus miraculosos aparatos. Nem Augustin Le Prince.
Que fim levou ele? Morreu, como, aliás, todos os nascidos em 1841. Mas de forma misteriosa. Na verdade, não morreu. Le Prince simplesmente desapareceu. Como num filme escrito por Agatha Christie e dirigido por Hitchcock.
Dijon, 16 de setembro de 1890. Le Prince passara o fim-de-semana com seu irmão Albert e perdera o trem da manhã para Paris. Pegaria o da tarde. Para evitar contratempos, almoçara mais cedo com Albert e chegara com razoável antecedência à estação. Às 14h42, o trem partiu e Albert viu o irmão pela última vez, acenando adeus. Duas horas mais tarde, Le Prince teria trocado de trem em Tonnerre, rumando para a capital francesa, onde um amigo, Richard Wilson, banqueiro na cidade inglesa de Leeds, o esperava para juntos atravessarem a Mancha. O ponto final era Londres. De lá ele embarcaria para Nova York, onde há tempos morava, levando todo o material necessário para patentear seu mais novo invento: o projetor cinematográfico de uma só lente.
Nunca chegou sequer a Paris. Crente que problemas profissionais haviam retido o amigo em Dijon, Wilson embarcou sozinho para Londres. Avisada do sumiço do marido, Lizzie Le Prince preferiu acreditar que tudo não passara de um ardil para despistar eventuais espiões. Numa data previamente combinada, foi esperar o marido no porto de Nova York, mas ele não estava a bordo do SS Etruria.
Por muitos anos, Lizzie teve esperanças de que, um dia, Le Prince reapareceria. Morreu, em 1926, acreditando que ele fora raptado e morto a mando de Edison.
Nascido em Metz, na França, Le Prince estudou em Bruges e Paris, doutorando-se em química, matemática e alemão nas universidades de Bonn e Leipzig, na Alemanha. Mudou-se para Leeds, na Inglaterra, onde se casou com a herdeira da fundição Whitley Partners. Seu interesse pelas imagens em movimento surgiu em Nova York, onde a família fixou residência em 1882. Seus primeiros inventos nasceriam, contudo, em Leeds, onde a fundição Whitley lhe oferecia a infra necessária. Em 1887, construiu uma câmera com 16 lentes, aceita pelo registro de patentes dos EUA em 1888.
Dali em diante, tudo seria diferente. Pudera. Em 1887, Edison passara a se interessar pelas "motion pictures". Seu forte era o som (na verdade, pouco entendia de óptica), mas tinha a seu lado um expert em fotografia, William Dickson, o verdadeiro inventor de tudo aquilo afinal atribuído a Edison. Além de esperto, o inventor do fonógrafo sabia como ninguém registrar uma patente e evitar que outros o fizessem antes dele.
Insatisfeito com a câmera de 16 lentes -e decepcionado por não ter conseguido patentear seu projetor de 16 lentes-, Le Prince partiu para algo mais ousado: a câmera com uma só lente. Não foi difícil. Os projetores eram mais problemáticos: exigiam mecanismos complicados e matérias-primas ainda inexistentes no mercado. Para funcionarem direito, necessitavam de filmes com a transparência dos slides utilizados nas lanternas mágicas e que, além de leves e flexíveis, resistissem ao intenso calor das lâmpadas de arco voltaico.
No verão de 1889, entusiasmado com o surgimento do celulóide, investiu no projetor de três lentes. Mas o celulóide não cumpre a função almejada e Le Prince volta a trabalhar com gelatina. Suas pesquisas avançam, ao contrário dos registros de patente, sempre devolvidos com pedidos de esclarecimentos. Julgava já ter tudo em ordem para registrar seu revolucionário projetor de uma só lente.
Le Prince não sumiu sozinho. Documentos importantes também desapareceram, o que muito dificultou a tarefa de patentear seu invento postumamente. A Mutoscope americana chegou a construir uma câmera de três lentes com base na patente de Le Prince, em 1889, mas, dois anos depois, Edison acabou sendo reconhecido como o inventor da câmera e do projetor de uma só lente.
Lizzie não tinha dúvidas de que seu marido fora traído por dois amigos, Clarence Seward e William Guthrie, sócios num escritório de advocacia especializado em registro de patentes, que teriam contrabandeado seus planos para Edison. Pode ser que uma coisa nada tenha a ver com a outra, mas, no mesmo ano em que Edison empalmou a patente que, em princípio, pertenceria a Le Prince, Adolphe, o filho mais velho de Le Prince, foi morto a tiros em Fire Island. Moral da história: o cinema já nasceu noir.

Texto Anterior: BNDES divulga lista de filmes que receberão incentivo
Próximo Texto: Banco Nacional de Cinema vira Espaço Unibanco
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.