São Paulo, sexta-feira, 29 de dezembro de 1995
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A aliança necessária

JOSÉ APARECIDO DE OLIVEIRA

As grandes empresas humanas dependem da conjunção entre o desejo e a necessidade. Sempre tivemos, não obstante a descontinuidade geográfica, o desejo de aprofundar e estreitar as relações entre os que falamos a mesma língua oficial em três continentes e nela transmitimos os mesmos sentimentos e valores ancestrais.
O mundo que começou a ser construído depois da queda do Muro de Berlim reafirmou a necessidade e a urgência da concretização da aliança que herdamos dos descobridores. A experiência dos últimos anos nos mostra que não se esgotam na economia os interesses que formam os grandes blocos políticos, e que a geografia já não é, como no passado, condição inexorável das alianças.
Mais poderosos do que os interesses econômicos, que mudam com as conquistas tecnológicas, são os valores do espírito. As fronteiras físicas -a não ser como marcos irremovíveis de soberania- perdem sua expressão diante das comunicações eletrônicas instantâneas e dos velozes meios de transporte.
Os novos tempos chegaram e encontraram o Brasil com capacidade de liderança, sobretudo porque o Itamaraty desenvolveu desde os anos 60 modernos estudos sobre a política externa independente do presidente Jânio Quadros. Um dos pilares principais da proposta era uma aproximação maior com a África e a Ásia, em especial com a China.
Ao lado do saudoso mestre Agostinho da Silva, grande filósofo português, que ajudava Darcy Ribeiro na implantação da Universidade de Brasília, participamos do movimento de apoio aos defensores da política anticolonialista no mundo lusófono.
Foram os primeiros e decisivos passos -incluindo a criação do Instituto de Estudos Afro-Asiáticos- para a superação dos velhos antagonismos e dificuldades diplomáticas. Mas a libertação de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe só aconteceu muito depois, como resultado da Revolução dos Cravos em Portugal.
O acontecimento possibilitou que, como ministro da Cultura do presidente José Sarney, eu articulasse, em 1989, o encontro dos sete chefes de Estado para a criação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa.
Essa foi a semente da proposta maior: a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Assim, o presidente Itamar Franco, ao me nomear embaixador, decidia formalizar uma nova proposta político-diplomática a Lisboa e aos Palop, sigla que define os países de língua oficial portuguesa na África.
O poder de nossa língua na cena internacional vai ser ampliado com a retomada da soberania do povo de Timor sobre o seu território. Nossa aliança terá mais uma nação e cobrirá as quatro partes do mundo. O português é falado na China (Macau) e nos Estados Unidos; no meio do Atlântico, em Açores; nas selvas amazônicas e nas savanas da África. Como país que concentra o maior número de lusófonos, tínhamos o dever de propor a formalização da Comunidade, e foi o que fez, por meu intermédio, o presidente Itamar Franco.
Em julho próximo, depois da visita oficial do primeiro-ministro Antonio Guterres ao Brasil, marcada para o mês de março, reunir-se-ão em Lisboa os chefes de Estado e, informa-se, já está confirmada a presença do presidente Fernando Henrique Cardoso.
A cimeira foi convocada para assinatura dos instrumentos de institucionalização da CPLP. Com a causa se encontram também comprometidos, além do presidente Mario Soares, líder da lusofonia, os candidatos à presidência -Cavaco Silva e Jorge Sampaio-, e a CPLP tem o entusiasmado e decisivo apoio do primeiro-ministro Antonio Guterres. O governo socialista retoma, com unanimidade da consciência política nacional, o compromisso atlântico da política internacional portuguesa.
Em que pese a crescente aproximação de Moçambique com as nações anglófonas, o presidente Joaquim Chissano reafirmou os fortes vínculos com a língua portuguesa e o seu governo acaba de promover, em Maputo, como me relatou o competente embaixador brasileiro Luciano Osório Rosa, um grande encontro para discussão das culturas originárias do português, incluindo até mesmo uma representação da Galícia.
A emersão da China, que deixa a sua solidão histórica, a crise de identidade por que passa hoje a Europa Comunitária, a reversão ideológica que se inicia no Leste Europeu com a vitória eleitoral dos comunistas, que pareciam, há apenas alguns meses, definitivamente aposentados do processo político, têm levado o Itamaraty a uma grande, lúcida e permanente imaginação estratégica.
Quaisquer que sejam os rumos da política internacional, a tendência natural se manterá no sentido das coalizões políticas assentadas em valores permanentes. E esses valores não encontram vetor melhor do que a língua comum. Na reunião promovida pelo Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa em Maputo o delegado brasileiro Affonso Romano de Sant'Anna assinalou nossa responsabilidade maior por ser o Brasil o grande usuário do idioma.
Os chanceleres dos sete se encontrarão em abril também na capital de Moçambique para propor o estudo em profundidade das possibilidades do novo bloco. Entre todos os blocos políticos da atualidade mundial, a CPLP é o único que, sem desprezar os interesses práticos de qualquer aliança, como são os econômicos, se funda no sólido terreno da história.

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