São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 1995
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Sete pecados capitais

MARCELO LEITE

Ano Novo é hora de uma das pragas da imprensa, os balanços. O meu, pessoal, é que esta coluna andou pegando leve com o jornalismo praticado no Brasil. No último dia do ano, aproveito para recuperar algo do tempo investido nas mazelas da Folha e passo a explicar por que considero a imprensa em geral "ruim, péssima", como escrevi no último dia 17.
São pelo menos sete os defeitos imperdoáveis do jornalismo brasileiro:
1. Fernandohenriquismo
O arrastão econômico, parapolítico e antidemocrático produzido pelo Plano Real continua em marcha. Investiu Fernando Henrique Cardoso no Planalto e, apesar do fogo amigo na Esplanada dos Ministérios e no Congresso, ainda alicerça um consenso inabalável entre os donos do poder.
O bezerro de ouro se chama estabilização. O bolo já não precisa crescer: basta que não desande. Há coisas mais urgentes que dividi-lo, como reeleger o presidente-professor. Todo o debate público se esfuma diante de meia dúzia de pedras-de-toque: modernidade, anticorporativismo, eficiência, privatização, competitividade, reforma.
Esse credo deixou há muito as salas de editorialistas e fincou raízes fundas nas redações.
2. Vazamentismo
Apesar de tudo, o governo-processo dos tucanos tem sido mais turbulento do que prometia o conceito vazio. Ele pára a todo momento, engasgado com escândalos fabricados por meio dos famosos "vazamentos".
Engana-se quem pensa que a coisa começou em novembro, com as ligações perigosas do embaixador falante. Uma das primeiras crises da era FHC, a cambial, também nasceu com a suspeita de que funcionários de primeiro escalão não guardavam segredos ditos de Estado.
O que é vazável para amigos pode também vazar para inimigos e para os que não são uma coisa nem outra: jornalistas. Funcionários de todos os escalões e repórteres usam uns aos outros para promover-se e abrir a cova de adversários.
Não são apenas grampos e pastas. Vazam também relatórios e projeções, de preferência contra o "atraso". É um porre de informações enviesadas, como a inepta relação de marajás do reformista profissional Luiz Carlos Bresser Pereira.
Assim inebria-se a imprensa, sustentando com custo baixo a alucinação de que faz jornalismo investigativo. Não faz. Os escândalos são postos no seu colo. Não existe jornalismo investigativo no Brasil digno desse nome.
3. Offismo
Nesse pântano de promiscuidade viceja, e não só em Brasília, a praga do "off" (obtenção de informações sob condição do anonimato da fonte). No Brasil, é encarado como instrumento cotidiano de reportagem, quando deveria ser a exceção. Jornalistas cortejam as fontes com chapéu alheio -o do leitor.
Tal tráfico não resiste a um exame ético. Anonimato é sinônimo de covardia, no mundo da informação e da opinião. Em "off", devem ser encaradas com o máximo de reserva, pois é grande a probabilidade de serem falsas ou parciais. Omitida a fonte, sonega-se ao leitor a possibilidade de avaliar a honestidade dos motivos na divulgação daqueles fatos, palavras ou documentos.
As regras consagradas do "off" determinam as condições em que se permite lançar mão do recurso:
O jornalista deve ter plena confiança na fonte, com base em um histórico de veracidade;
A fonte deve ter motivo plausível e aceitável para proteger-se (como risco de vida ou de punição);
A informação em pauta deve ser de grande relevância para o público;
O jornalista deve tentar confirmá-la com pelo menos uma fonte independente;
Cabe à fonte pedir e ao jornalista aceitar -ou não- o "off", nunca o inverso.
A maioria as reportagens em "off", neste país, não satisfaz nenhuma dessas condições. Na Folha, o leitor pode reconhecê-las pelo emprego da fórmula canônica "a Folha apurou que...".
4. Retranquismo
A superexposição vaidosa de jornalistas e suas fontes é facilitada pela divisão de trabalho em jornais diários. Quando mais de um repórter se envolve numa cobertura, é mais fácil reservar um texto para cada um. No jargão jornalístico, uma retranca (originalmente, o nome dado para a identificação de uma prova tipográfica).
Com esse estilhaçamento, economiza-se tempo necessário para fundir textos, criar laços, aparar redundâncias e incongruências. Mas também diminui a inteligência dos relatos. O leitor se vê obrigado a refazer todo o chuleado no "patchwork" das páginas.
Os jornais renunciam a tentar ser o fio que conduz leitores pelo labirinto do dia anterior. Transformam-se em caleidoscópios. Brilhantes, variados, multicoloridos -e tão inúteis quanto enfadonhos.
Na reforma gráfica inaugurada há 11 dias, "O Globo" tenta combater essa tendência. Leitores da Folha teriam mais ainda a ganhar se na sua reforma, programada para este início de ano, o jornal aproveitasse para criar algum antídoto a essa fragmentação que torna tudo supérfluo.
5. Egocentrismo
Com a decadência da articulação, decaem também aquelas rubricas mais tradicionais do jornalismo: política, economia, internacional, cultura. Crescem em importância, como assinalou Otavio Frias Filho em artigo por ocasião da inauguração de Centro Tecnológico Gráfico-Folha, áreas como saúde, consumo, lazer, moda.
Como num fractal, a possibilidade de subdivisão parece infinita. Há cadernos, suplementos e seções para todos os gostos e idades: internet, crianças, clubbers, turismo ecológico, esportes radicais, gastronomia, taras sexuais, teens... Sob a aparente dispersão, uma constante: a tríade ego-corpo-consumo.
Nem bem emergem, assuntos novos são reciclados. Basta ver o que aconteceu com as seções de ambiente e ciência, nos jornais diários brasileiros. Pior, essa substituição frenética de temas da moda nada tem a ver com a marcha do mundo.
Os problemas ambientais, por exemplo, não foram resolvidos nem sequer equacionados, só tendem a recrudescer na esteira arrasadora da desregulamentação. Mais e mais filhos de jornalistas sofrem de asma, mas eles só vêem ecochatos entre os ambientalistas.
6. Pós-sensacionalismo
Entre as modas regurgitadas antes mesmo de iniciada a digestão está a do politicamente correto (P.C.). A Folha, sempre antenada no exterior, logo começou a reproduzir a crítica aos excessos no policiamento do discurso. No que, aliás, fez muito bem.
Só que, para usar um velho clichê, a criança foi com a água do banho. O jornal não apenas descartou a terminologia expurgada como passou a explorar seu oposto. Na maior parte dos casos, apenas para chocar, provocar sensação.
O anti-P.C. fomenta o renascimento da reportagem policial, fonte permanente de escabrosidades, nos jornais de prestígio. Era a justificativa que faltava para pôr pudores de lado. O anseio por histórias acabadas, frustrado nas seções tradicionais, refugiou-se no crime.
Falando sobre literatura, Marcelo Coelho escreveu na Ilustrada algo que se aplica também ao jornalismo: "Só há senso de narrativa e de destino, hoje em dia, quando há um mistério, um investigador, um caso de morte". O texto de jornal agora depende dessa transfusão sanguínea para conseguir acelerar batimentos cardíacos em leitores enfastiados.
Um certo descaramento e desprezo pelas convenções tornaram-se essenciais para esse jornalismo de resultados. O que antes era ceticismo cede passo para o cinismo. Gastam-se toneladas de papel, tinta e lágrimas de crocodilo para exorcizar o caso Escola Base, mas tudo continua na mesma. Vera Fischer que o diga.
7. Colunismo
A imprensa emburrece no atacado, mas progride no que se poderia chamar de ilhas de quase-excelência. Articulação, independência, critério e bom texto sobrevivem em pequenas reservas, as colunas de opinião. Não raro esses profissionais disputados a peso de ouro deblateram contra a qualidade do jornalismo que se produz, literalmente, à sua volta.
O curioso é que essas colunas deixaram de ser exposições de opinião para se transformar em fontes de informação. Competem com um noticiário anêmico, descarnado. Quando essas estrelas se dignam descer ao térreo da reportagem, o resultado costuma ser um show.
Outra reserva de raça, esta criada pela Folha, são unidades "ad hoc" como as mobilizadas para os dossiês Tempo Real, nas edições de domingo. Boa notícia: o jornal acaba de criar uma editoria especial para fazer o mesmo nos dias de semana. Oxalá essa política de proliferação de guetos acabe conduzindo, por osmose ou capilaridade, a uma melhora consistente do noticiário.

Assim como aos pecadores falta piedade, aos jornais brasileiros falta inteligência.
Soberba
Por falar em pecado, andam prevaricando feio as autoridades deste país. É impossível que somente depois da divulgação do vídeo da Universal tenham tomado conhecimento dos muitos crimes de que agora afirmam ter evidências contra a seita de Edir Macedo. Pela simples razão de que a fita é pífia, nesse aspecto.
Não quero com isso dizer que ela não seja devastadora para a Universal. É. Tenho dúvidas porém de que contenha qualquer coisa que possa ser levada a um tribunal ou sirva de pretexto para cassar a concessão da Rede Record, como querem a Rede Globo e a Igreja Católica.
E já que o assunto são concessões públicas: se desperta justo alarme a expansão telemática do charlatanismo, não menos inquietação deveria provocar a sem-cerimônia da Globo ao promover campanhas em causa própria. Sejam elas a favor de Collor, ACM e FHC ou contra Edir Macedo, democráticas é que não são.

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