São Paulo, quinta-feira, 2 de fevereiro de 1995
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'Kean' mostra que o teatrão está vivo

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Anunciou-se cedo a morte do teatrão. O teatro orgulhoso dos clássicos, da cortina de veludo, dos figurinos que se arrastam no chão. Aí está "Kean", para órfãos do TBC. Apropriadamente, a peça começa por uma conversa entre condessas, sobre Shakespeare, com piadas bem-pensantes sobre "Hamlet". Com frases de duplo sentido, como "Shakespeare é perturbador", seguida de risos, pois o que se diz é que o ator que faz Shakespeare é perturbador.
Até aí é possível rir; trata-se ainda de uma brincadeira de salão. Estamos no palco do romantismo mais ingênuo, em princípio como chiste, consciente da frivolidade, feliz com ela. Mas logo a cena se confunde e pesa. "Kean", peça de Alexandre Dumas, dos deliciosos romances juvenis, como "Os Três Mosqueteiros", perde toda a sua ingenuidade e ganha empostação para além do suportável, reescrita que foi por Jean-Paul Sartre.
O triângulo amoroso entre o ator Edmund Kean, o príncipe de Gales e a condessa de Koefeld é então pontuado por comentários como "não tenho substância", "Shakespeare me coloca todas as noites em situações falsas", "eu não sou nada, eis o que sou" e muitas outras, todas de Kean.
O exagero na metalinguagem, sem que se apresente claramente, mas arrastando-se pelos cantos em meio à trama romântica, chega a ser nauseante. Tanto mais que não se limita ao texto, contaminando direção, interpretação, cenografia. Por exemplo, um grande espelho, depois outro, usados pelos atores ostensivamente. Noutro exemplo, a troca de cena à vista de todos, para expor o teatro; pode-se dizer até, um maneirismo modernista.
O intérprete mais prejudicado é Marco Nanini. A sua grande cena, aquela em que ofende o príncipe quando faz "Otelo" (aliás, peça usada por Sartre em lugar da mais romântica "Romeu e Julieta"), é quase ininteligível. O triângulo amoroso está esquecido, perdido, e a confusão se instala em tudo.
Resta, o que não é pouco, pelo contrário, a representação que faz do grande ator romântico. Como foi escrito sobre Kean, também ele apresenta um "fogo intenso", "paixão desarticulada", "rápidas e fortes mudanças de emoção", "impetuosidade de movimentos", ainda que com uma peça que nada tem de Shakespeare, que deu fama a Kean. Aliás, é bom registrar que Marco Nanini deve um "Hamlet".
Também saem prejudicados de "Kean" a atriz Angela Dip, sem alternativa que não a caricatura de sua condessa, e Luciano Chirolli, um dos grandes comediantes a surgir no teatro nos últimos anos, mas que compõe aqui um príncipe de Gales, também sem alternativa, apalermado. E é assim que ainda conseguem, principalmente o ator, sobretudo no final, suas melhores cenas em humor e envolvimento.
Livre do triângulo, livre do jogo de espelhos, livre da discussão forçada sobre o ator, quem marca o espetáculo é Débora Bloch. Sua interpretação é puro romantismo. É engraçada, leve, apaixonada. Uma simples frase, por exemplo, "meu Deus, estou diante dele!", ao encontrar o ator que admira, basta para arrancar gargalhadas e derrubar as restrições. Além de sua beleza, é a sua "imaginação romanceada", como afirma Kean, o que há de melhor em "Kean".

Título: Kean
Direção: Aderbal Freire-Filho
Quando: quinta a domingo, às 21h
Onde: Teatro Cultura Artística (r. Nestor Pestana, 196, tel. 258-3616)
Quanto: De R$ 10 a R$ 20

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