São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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'Currency board' é uma idéia simplista

ÁLVARO ANTÔNIO ZINI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Ser contra o fumo não é para matar o fumante, mas para convencê-lo a parar de fumar."
Luís Martins, da FEA/USP, resumindo as razões contra o "currency board"

Clóvis Rossi, enviado da Folha ao Fórum Econômico de Davos, registrou na edição de 30 de janeiro as opiniões de Steve Hanke, uma professor americano fanático do "currency board" (caixa de moeda).
"Só a caixa de moeda ata a mão dos políticos e impede que possam fazer o que quiserem", disse Hanke, que se autoproclama o idealizador da Lei de Conversibilidade da Argentina e do "currency board" da Estônia.
Mas Hanke solicita aplausos por algo que não é de sua autoria. A caixa de moeda da Estônia foi sugestão dos governos da Alemanha e de países escandinavos, que se comprometeram a restituir aos estonianos os depósitos de ouro que haviam sido retidos depois da invasão russa, bem como a "bancar" o sistema se algo der errado.
No caso da Argentina, a dolarização da economia foi ocorrendo ao longo de vários anos, tendo sido acelerada pela hiperinflação de 1989. Teoricamente, o modelo da âncora cambial foi pensado por gente séria como Michael Bruno, Guillermo Calvo, Thomas Sargent e outros, inspirados pelas estabilizações dos anos 20.
Âncora cambial é uma coisa: basicamente, significa manter o câmbio fixo e ter reservas para defender a moeda. "Currency board" é outra coisa: é a versão radicalizada da âncora cambial.
Steve Hanke não é um nome de muito prestígio no cenário internacional. No presente, tem sido um "promoter" do "currency board" e um promotor de si próprio. Faz lembrar uma frase do escritor John Leggett: "América (EUA); terra onde fazer fama da noite para o dia é tanto um ideal como uma indústria bem lucrativa".
Segundo Clóvis Rossi, o ministro Cavallo nomeou Hanke como seu assessor especial para propagandear aos investidores internacionais as vantagens do "currency board". Disso só se pode concluir que Cavallo está mais inseguro do que deixa transparecer.
O "currency board" (CB) é uma autoridade monetária simples. Ele emite uma moeda sob sua chancela, para circulação local, contra recebimento de dólares ou de alguma outra moeda escolhida como âncora. O CB não se responsabiliza por outros instrumentos monetários, mas só pela moeda primária de sua emissão.
Por essa razão, o CB não atua no open market para regular a liquidez da economia e tampouco age como emprestador de última instância quando alguma instituição financeira fica ilíquida.
Por aqui já se vê que nem a Argentina opera assim. Com a recente crise mexicana, diversos bancos argentinos sofreram falta de liquidez e foram socorridos por operações montadas pelo Banco Central.
Convém atentar para algumas implicações desse sistema. A adoção de um CB implica que o estoque de moeda local será maior ou menor dependendo dos agentes trazerem mais ou menos dólares para a economia. Neste sentido, o CB não é suficiente para evitar que ocorram aumentos ou quedas no nível de preços.
Se, por alguma razão, houver uma grande entrada de capitais externos, haverá uma expansão da moeda que, se não for absorvida pelos agentes, pode aumentar o nível de preços. Arma-se um mecanismo de ajustes tal como no sistema-ouro do fim do século 19.
Mas o mundo abandonou o sistema-ouro pelos problemas que ele apresentava. Existem períodos em que os preços podem subir ou cair significativamente e a correção subsequente pode ser prolongada.
O Brasil, no período citado (meados do século 19 ao começo do século 20), não esteve livre de grandes flutuações cambiais ou de preços, quer por fatores externos, quer por fatores internos (como a crise do encilhamento).
Há outras implicações. A mais importante delas é que o governo deixa de ter a possibilidade de se financiar junto ao Banco Central, se precisar. Tal sistema só funciona se o governo mantiver o Orçamento Público em grande equilíbrio.
Ademais, ao adotar uma caixa de moeda, o governo abre mão da possibilidade de desvalorizar a taxa de câmbio. Assim, se houver um choque externo ou um fator que abale a confiança dos investidores e cause fuga de capitais, só resta o caminho da recessão para ajustar a economia, porque a taxa de câmbio não pode ser alterada.
Resumindo, o "currency board" é uma autoridade muito mais simples que um Banco Central, que age como emprestador de última instância, inspeciona o funcionamento das instituições financeiras e age soberanamente em relação à moeda do país. Por estes fatores, a quase totalidade dos países tem rejeitado as caixas de moeda.
A tese de formação de "currency boards" é favorecida pelos investidores internacionais, que gostariam de ter um mundo seguro no qual pudessem enviar e retirar seus capitais de qualquer país sem ter a preocupação de desvalorizações cambiais. Por esta razão, Hanke sugere os CBs tanto para a Rússia quanto para o México; tanto para o Brasil quanto para a Estônia.
Mas para países grandes, com mercados financeiros complexos, a política simplista da caixa de moeda significa abrir mão da possibilidade de corrigir desequilíbrios do mercado. É uma recusa grande demais em um mundo complexo, onde os fluxos de capital são enormes e a moeda é fiduciária.
A experiência histórica de estabilização dos anos 20, 40 e atuais mostra que um "currency board" não é nem necessário nem suficiente para a estabilização. A maioria das estabilizações através da história ocorreu sem "currency boards", ao passo que alguns países com arranjos similares às caixas de moeda (como a Libéria e o Panamá), mesmo assim caminharam rumo à falência do Estado nos anos 80.
O saldo da discussão é que não vale a pena atar as mãos das autoridades econômicas em nome de virtudes que podem ter um custo potencial muito elevado. Um bom Banco Central pode criar uma moeda confiável, baseada em regras claras, e estabilizar a economia.

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