São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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CLEÓPATRA

1907
DE VIDRO, NEM MORTA NEM VIVA.

Sobre ela a multidão saliva
palavras torpes em voz baixa.

Ela se estende preguiçosamente
no sono eterno em que se recolhera...
Lenta e suave, uma serpente
morde o peito de cera...

Eu mesmo, fútil e perverso,
com olheiras de anil,
vim ver o lúgubre perfil
na cera fria imerso.

Todos te contemplamos neste instante.
Se essa tumba não fosse uma mentira
eu ouviria, outra vez, arrogante,
teu lábio putrefato que suspira:

"Dai-me incenso. Esparzi-me flores.
Em eras anteriores
fui rainha do Egito. Hoje sou só
cera. Apodrecimento. Pó."

"Rainha! O que há em ti que me fascina?
No Egito, como escravo, eu te adorei.
Agora a sorte me destina
a ser poeta e rei.

na Rússia como em Roma? Não vês, mais,
que eu e César, em séculos e eras,
ante o destino seremos iguais?"

Emudeço. Contemplo. Ela não muda.
Só o peito pulsa, quase
respirando entre a gaze,
e ouço uma fala muda:

"Outrora eu suscitei paixões e lutas.
O que suscito agora?
Um poeta bêbado que chora
e o riso bêbado das prostitutas."

ALEKSANDR BLOK

Traduções de AUGUSTO DE CAMPO

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