São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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DA GERAÇÃO QUE DISSIPOU SEUS POETAS

AUGUSTO DE CAMPOS
DA GERAÇÃO QUE DISSIPOU SEUS POETAS

Pasternak viu sua literatura afetada pela mão forte do policialismo

"Nótch, úlitza, fonar, aptieka (...) / Nótch, liediá riab kanala, / Aptieka, úlitza, fonar." (em minha tradução: "Noite, Fanal. Rua. Farmácia. (...) Noite — rugas de gelo no canal. / Farmácia. Rua. Fanal.") Os textos do ciclo anterior dos "Versos Italianos" (1909) —de que traduzo agora mais um dos poemas dedicados a Veneza (um outro dessa série e mais "Ravena" encontram-se no livro "Linguaviagem")— já parecem caminhar na direção de uma sobriedade maior, por entre as fantasmagorias mortuárias que despertou em Blok a visão dos monumentos do passado, a "iconóstase soturna" das igreja italianas.
À mesma linhagem pertence este sinistro "Cleópatra", que Blok escreveu, em 1907, sob o impacto da visita a um museu de cera que incluía a imagem da rainha egípcia. Angelo Maria Ripellino ("Aleksándr Blok/Poesie", 1987) transcreve um curioso relato de Kornei Tchukóvski, que afirma ter visto nesse museu o poeta "angustiado e sombrio, junto à rainha de cera semideitada com uma pequena serpente na mão —uma serpente negra de borracha que, obedecendo a uma mola, mordia-lhe seguidamente o peito nu, para gáudio da multidão obscena".
Como a "poesia-coisa" que Rilke desenvolveu nos "Novos Poemas" (1907-1908), também a poesia de Blok se adensou com o tempo, abandonando o melodismo e as vaguidades simbolistas em prol de uma dicção mais contida e severa, sem, no entanto, deixar de registrar o desencanto do poeta, as suas perplexidades vivenciais e a sua obsessão pela morte. Pois não é o mesmo Blok que, prenunciando a síndrome de Iessiênin e Maiakóvski, escreve em seu diário, em 1914: "Quando é que eu estarei livre para me matar?"
A poesia de Mandelstam só se tornou mais conhecida nas duas últimas décadas. Com Anna Akhmátova ele integrara, nos primeiros anos de sua vida literária, em 1912, o grupo dos "acmeístas" (de "acme", culminância, proveniente do grego "akmè") conduzido por Gumilióv e Gorodétski, que pretendia reagir contra o simbolismo, postulando uma poesia de cunho objetivo. Mas Mandelstam, como Akhmátova, tinha uma personalidade singular que não se coadunava com nenhuma ortodoxia. Curiosamente, tanto o "acmeísmo", como o "imagismo" russo, que eclodiria na década seguinte, aquele enfatizando a concisão e a objetividade, este dando primazia à imagem, foram influenciados pelo imagismo poundiano. Porém, ambos os movimentos, de fato submovimentos em relação ao cubofuturismo, que hostilizavam, tiveram pouca consistência e pouca duração.
Admirador de Villon e de Dante, de quem costumava recitar de cor os versos originais, Mandelstam desenvolveu uma poesia de inquietação existencial, de índole "pietrosa" —como observou François Kérel ("Tristia et Autres Poémes", Gallimard, 1975). Não por acaso seu primeiro livro se chamou "Pedra" (1913), um título emblemático: "taciturnidade cum Dinglichkeit (Coisicidade)" se expressam nessa "grande imagem muda" —acentua Clarence Brown em sua monografia sobre o poeta ("Mandelstam", Cambridge University, 1973). Para Brown os pontos de afinidade entre o ideário dos imagistas angloamericanos e dos acmeístas são mais do que evidentes, podendo resumir-se na fórmula de Basil Bunting a que Pound deu tanta proeminência no "ABC of Reading": "Poesia (Dichten) = condensare".
Em Mandelstam —como se pode ver dos dois poemas "Silentium" (1910) e "A Concha" (1911), ambos do livro "Pedra"— a densidade da linguagem e a concretude imagética são postas a serviço de uma permanente indagação metafísica, frequentemente referenciada ao passado cultural, com ênfase na civilização greco-latina. Alguns anos depois, Mandelstam publicaria "Tristia" (1922) e "Poemas" (1928), onde o seu estilo se consolida. Tido como contra-revolucionário pelas autoridades soviéticas, foi poupado por algum tempo graças à interferência de amigos, entre os quais Bukhárin e Pasternak. Preso em 1934, por ter escrito versos satíricos contra Stálin, sentenciado a três anos de exílio na remota Cherdyn, tenta o suicídio. É, a seguir, confinado na cidade de Vorônej (1935-37). Detido pela segunda vez em 1938 e condenado a cinco anos de trabalhos forçados, morreu, em data incerta, num "campo de passagem", enquanto aguardava a deportação para um dos campos de reeducação da Sibéria.
Dentre os seus derradeiros poemas se destacam os versos fragmentários, repassados de amargura e tristeza, dos "Cadernos de Vorônej", preservados pela mulher, Nadeja. Em muitos poemas da última fase Mandelstam se avizinha dos cubofuturistas, especialmente de Khliébnikov, pelos jogos verbais e pela exploração das raízes vocabulares, como se pode ver no poema traduzido (o original é oferecido também em transcrição fonética para que se perceba a textura sonora), no qual o nome da cidade Vorônej reverbera em outras palavras e se decompõe em "vóron" (corvo) e "nój" (faca), para substantivar obsessivamente o desespero do poeta.
Futurista também foi, por algum tempo, Boris Pasternak, o mais esfíngico, e um dos mais atormentados dentre os poetas russos, talvez porque tenha sido um dos poucos que conseguiram sobreviver na URSS à margem dos padrões do realismo socialista. Em sua poesia convergem influências díspares: do simbolismo (Blok e Biéli) e do imagismo, de Rilke —um dos autores básicos na sua formação— e de Maiakóvski. Mas Pasternak, que alcançou, além disso, grande renome como tradutor de poesia, acabaria por expressar-se num estilo classicizante, adotando formas fixas, ainda que numa linguagem e numa sintaxe muito pessoais.
O poeta, que viu, ao longo dos anos, morrerem soturnamente alguns dos seus mais caros e talentosos companheiros de geração, de um modo ou de outro vitimados pelo regime comunista, teve, afinal, ele próprio, a sua vida literária afetada pela mão forte do policialismo soviético, mesmo na fase do "degelo" pós-stalinista. A atribuição do prêmio Nobel, a ele concedido em 1958, pouco depois da publicação na Itália da tradução do seu romance "Doutor Jivago", foi recebida em seu país com críticas insultuosas, acusações de traição e a expulsão da União dos Escritores. Sob ameaça de exílio para o exterior, renunciou à láurea. Na verdade, o que estava em causa não era o prêmio em si, ainda mais quando se considera ser o Nobel, fora do âmbito do mundanismo literário, uma honraria desprestigiada pela mediocridade e pela politicagem de seus julgamentos. A questão era a da liberdade, que a URSS, a caminho da desestalinização, ainda uma a vez pisoteou, coagindo o escritor.
Nos últimos anos, ele viveu praticamente em exílio domiciliar, na "datcha" de Peredélkino, onde, apesar da expulsão da União dos Escritores, lhe foi permitido continuar a residir. É dele uma das mais belas reflexões sobre o tema da celebridade, à qual, de qualquer forma, chegaria, mais por conta do "affair" Nobel do que por sua própria obra poética, mal conhecida fora de seu país e cerceada dentro dele. O texto foi escrito em 1956, dois anos antes, e de algum modo se liga à história dessa dramática geração de poetas. Será talvez incompreensível a sua exortação contra a fama a um mundo como o atual que, em grande medida, parece ter perdido a sensibilidade ética e estética em favor de exibicionismos tão levianos quanto fugazes. A voz desse poema soa hoje mais solitária do que nunca, mas, mesmo "clamantis in deserto", merece ser difundida. É a resistência ética, a alma rebelde da poesia, contraestilo do fracasso, diante das imposições e imposturas do poder e da glória.

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