São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O Oriente fala português

JAIME SPITZCOVSKY
DE PEQUIM

A China lança o seu primeiro dicionário português-chinês desde 1949, quando os comunistas chegaram ao poder pelas mãos de Mao Tse-tung. O novo trabalho reflete mais um aspecto da abertura ao exterior, a chamada "política da porta aberta", fenômeno que contrasta com o isolacionismo cultuado religiosamente pelos maoístas durante a Revolução Cultural (1966-1976).
O "Dicionário Conciso Português-Chinês", com 1.142 páginas e 50 mil palavras, concentra o trabalho de seis anos dividido entre quatro professores da Universidade de Línguas Estrangeiras de Pequim. Zhao Hongling, Cui Weixiao, Zhou Hanjun e Wang Zengyang passaram noites em branco, mergulhados em palavras portuguesas e caracteres chineses, buscando semelhanças e diferenças.
A primeira edição chegou às livrarias de Xangai e Pequim em agosto passado e, quase esgotados os 3.000 exemplares dessa leva, a editora estatal xangaiense Imprensa Comercial já prepara uma nova fornada de dicionários, cujo exemplar custa 40 yuans (US$ 5). "Temos recebidos cartas de Taiwan, Hong Kong, Macau e até de chineses do Brasil, pedindo o dicionário", conta a professora Zhao, num fluente português modulado por um sotaque lisboeta.
Os pesquisadores chineses usaram o português de Portugal, refletindo a orientação de sua universidade, que ainda prefere a versão camoniana aos brasileirismos. Mas o sotaque em Pequim nem sempre foi esse. Quando inaugurados os primeiros cursos, na década de 60, os professores vinham do Brasil.
Naquela época, Portugal vivia cercada pela ditadura salazarista e afastada da China de Mao Tse-tung. Mas, em 1974, o regime anticomunista se esfacelou e Lisboa se aproximou de Pequim, como nos tempos das aventuras marítimas que levaram os portugueses a conquistarem Macau, em 1557, para estabelecerem a primeira feitoria européia em paragens chinesas.
Com a reaproximação, Pequim negociou a volta de Macau ao domínio chinês, marcada para 1999, e testemunhou a vitória da versão portuguesa nos meios acadêmicos. "Passamos, em nossa universidade, a ter mais contatos com Portugal e hoje nossas ligações com o Brasil são muito poucas", conta Zhao. Seu departamento desfruta do direito de contratar um professor estrangeiro, que atualmente é uma portuguesa.
"Desde o tempo em que era aluna de português, sentia falta de um dicionário", comenta a professora Zhao, 42. Nos anos 60, padres portugueses radicados em Macau publicaram um dicionário. Mas os acadêmicos, nas décadas seguintes, começaram a sentir a falta de um trabalho que comparasse as línguas portuguesa e chinesa.
A idéia do dicionário surgiu em 1984, seis anos depois de a China abrir mão do isolacionismo maoísta e embarcar na revolução capitalista capitaneada por Deng Xiaoping. O mundo dos negócios se espraia hoje por prédios antes ocupados por células do Partido Comunista, que sobrevive monolítico no poder, apesar das mudanças trepidantes.
A professora Zhao radiografa o público interessado no dicionário: "Como a porta está aberta para mais negócios com Brasil ou Portugal, são empresários, gente de embaixadas ou companhias estatais, chineses que vão trabalhar fora do país ou mesmo imigrantes que já vivem no Brasil, por exemplo".
Concebido para chineses, o dicionário, ao oferecer a versão chinesa, mostra apenas os caracteres e não usa uma transcrição fonética ou o "pinyin". Este sistema recorre ao alfabeto latino para facilitar a pronúncia aos estrangeiros pouco versados no labirinto representado pelo idioma usado na China. "Apenas alertamos o usuário quando a vogal em português deve ser pronunciada de maneira aberta ou fechada", explica Zhao Hongling.
Entre as armas utilizadas nesta guerra de palavras, Zhao conta que recorreu a dicionários tradicionais editados em Portugal e Brasil, e também a sua experiência de viver um ano em Lisboa, entre 1984 e 1985. Depois, aterrissou em Macau, onde trabalhou dois anos e meio na Xinhua, a agência chinesa de notícias. Em Pequim, voltou à vida acadêmica, uma opção já abandonada por dois autores do dicionário, Zhou Hanjun e Wang Zengyang. Estes preferiram se aventurar no mar de capitalismo que inunda a China.
Zhao ilustra a geração de chineses crescidos durante a ortodoxia maoísta. Em 1976, concluiu o curso de espanhol e, em seguida, embarcava para uma "missão internacionalista", conforme o jargão usado nos tempos em que enriquecer na China era pecado mortal. Foi destacada para ajudar a revolução em Moçambique, onde teve que esquecer o aprendido na universidade para adotar o português como sua nova especialidade. A aventura africana durou até 1979.
"Hoje em dia, os chineses na universidade procuram cada vez mais o português do que o espanhol", diagnostica Zhao. Para explicar a tendência, ela recorre ao cenário da geopolítica internacional: "As pessoas percebem que as relações entre a China e Portugal e entre a China e o Brasil passam por um excelente momento, o que aumenta as oportunidades".

Texto Anterior: ALEMANHA; AUTÓGRAFOS
Próximo Texto: Sutilezas da língua e tecnologia precária dificultaram a pesquisa
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.