São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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O incômodo painel literário de Auerbach

SAMUEL TITAN JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Erich Auerbach não é um nome desconhecido entre nós: há 25 anos sua obra maior, "Mimesis - A Representação da Realidade na Literatura Ocidental" vem frequentando os currículos de letras das universidades paulistas. Sua publicação, em 1970, familiarizava o público com um representante modelar da estilística romântica alemã —um grupo seleto que incluía Vossler, Spitzer e Curtius.
Num ambiente intelectual dominado pelo projeto —difundido por Antonio Candido— de fundir com rigor e sem reducionismos análise literária e ponto de vista histórico-sociológico, "Mimesis" parecia oferecer a desejável caução de um grande nome e o exemplo prático do fino trato com a grande literatura ocidental, de Homero a Virginia Woolf.
As análises estilísticas detalhadas de cada capítulo permitiam a dupla visão das obras como cristalizações das grandes correntes históricas e como respostas humanas —contingentes e criativas— a estas mesmas correntes. O sucesso foi tão previsível quanto merecido.
Vem em parte daí o interesse da publicação deste "5º Colóquio Uerj - Erich Auerbach": as conferências e debates reunidos servem bem para medir o deslocamento das atenções, do caráter modelar das análises isoladas para as grandes questões que a nova voga da teoria literária parece impor.
Agora, o que desperta a atenção e as suspeitas dos palestrantes é a ambição totalizadora do projeto de Auerbach —escrever a história da literatura ocidental do duplo ponto de vista da quebra da separação clássica de estilos e do nascimento do realismo enquanto "consideração séria da vida cotidiana".
O reconhecido valor das análises particulares parece empalidecer frente ao fantasma de anacronismo e teleologia para-hegeliana infusos na obra. Passam a interessar agora a estrutura narrativa de "Mimesis", a possibilidade de grandes interpretações sinópticas, a questão da historiografia como produção retórico-literária etc.
É compreensível, então, que a noção de "figura" ocupe o centro das discussões. O conceito é de origem patrística e designa um modo de alegoria que, segundo Auerbach, seria uma chave para a arte e literatura medievais. Nela, um evento passado e incompleto (a "figura") anuncia outro evento, futuro e pleno: assim, Moisés conduzindo os israelitas pelo deserto é "figura" de Cristo, que conduz a humanidade à redenção.
O evento terreno não é um véu para um conceito moral ou teológico abstrato. Mas a relação entre os eventos não é causal-horizontal, mas sim vertical e garantida por Deus, para quem não há sucessão: todos os eventos estão desde sempre dados na visão divina.
Assim, João Adolfo Hansen encontra nesta noção a chave para a escrita do próprio Auerbach. "Mimesis" seria concebido deste ponto de vista, anacrônico e meta-histórico por definição, isto é, a partir de um presente que é do analista, mas que se supõe desde sempre válido. O livro estaria dominado, a despeito de toda a finura estilística e histórica de seu autor, pela necessidade de atualizar o valor de textos antigos enquanto "representações sérias da vida cotidiana".
Atacando por outro viés, Luiz Costa Lima procura mostrar (aliás de modo muito vago) as dificuldades de Auerbach com os aspectos teleológicos e "proto-hegelianos" (sic) da mesma noção patrística. O crítico alemão não teria escapado à tentação de substituir a história divina da redenção por uma outra grande narrativa histórica, certamente humana, mas igualmente ansiosa por impor algum sentido definido ao curso histórico.
As suspeitas de Hansen e Costa Lima são representativas do tom geral das outras contribuições, onde o que de fato parece estar em jogo é a possibilidade de "qualquer" interpretação. É apenas de estranhar que, imbuídos de tais preocupações e tão ciosos da "crise do sujeito" e outras crises mais, os autores tenham se lançado em vôos teóricos tão altos; nenhum, de fato, buscou seguir neste encontro a trilha que, bem ou mal, o próprio Auerbach indicou: a do confronto direto com as obras como única maneira de determinar e singularizar historicamente as questões da teoria literária.
Respondendo às primeiras críticas a "Mimesis", ele escrevia assim no fim da vida: "O ponto de vista não deve ser qualquer coisa de ordem geral que se aproxime de fora ao objeto, ele deve nascer deste último, deve ser um elemento do próprio objeto. Há que fazer falar as coisas (...)."

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