São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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Karel Tchápek reconta a Bíblia

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA FOLHA

Salvo engano, só há duas palavras em português derivadas do tcheco. A primeira é "pistola", que existe em nossa língua desde o século 16. A segunda é "robô", que vem do tcheco robota, "trabalho pesado", e foi inventada pelo dramaturgo, romancista, jornalista e contista Karel Tchápek (1890-1938), numa de suas peças mais conhecidas.
Até a metade do século, nenhum outro escritor disputava com Tchápek a estima mundial como maior escritor do seu país. Isto pode soar estranho agora, quando a literatura tcheca praticamente se resume a Kafka (que escrevia em alemão) e, em menor escala, Jaroslav Hasek, autor de O Bom Soldado Schweik. Mas a peça de Tchápek, R.U.R. (sigla para "Robôs Universais Rossum") —uma mistura de ficção científica e fábula moral, onde o mundo é dominado pelos robôs— atingiu enorme sucesso na década de 20 e transformou Tchápek num autor de porte internacional.
A ela se seguiu outro grande sucesso, O Segredo de Makropulos (1922). Melhor conhecida como O Caso Makropulos, na recriação operística do compositor tcheco Janacek, esta é outra narrativa quase alegórica, sobre a imortalidade —o elixir da vida, que, a despeito de tudo, ninguém quer. As duas peças não resistiram ao tempo; são pouco mais que curiosidades de época e contribuíram, retrospectivamente, para abafar a reputação do seu autor. Tchápek, hoje, é tido apenas como o inventor da palavra "robô", e um precursor meio sem graça da ficção científica e da sátira à tecnologia.
Isto é uma grande injustiça, que a tradução das Histórias Apócrifas apenas começa a reparar entre nós, mas reparar em grande estilo. Mais uma vez somos devedores de Nelson Ascher, que dirige a Coleção Leste, e do tradutor Aleksandar Jovanovic, responsável por aquela que é, provavelmente, a primeira tradução literária direta do tcheco para o português.
"Apócrifo" significa tudo aquilo cuja autenticidade não foi provada. Mas a palavra tem também conotações religiosas: os "Evangelhos Apócrifos" são os textos não incluídos pela Igreja no cânone das escrituras "autênticas", se é que existe critério de autenticidade nesse caso. Reunindo pequenos escritos, redigidos desde 1920 até sua morte em 1938, as Histórias de Tchápek são explícita e irresistivelmente "apócrifas". São recontagens, em diálogos imaginários, da história "real" —nem épica, nem lírica, nem dramática, a história dos pequenos homens e mulheres, que se transformam em História, com h maiúsculo, cada vez que alguém faz do acontecido um poema, ou um evangelho.
No melhor estilo do Leste, a arma de Tchápek, seu verdadeiro instrumento de leitura, é o humor. Ele serve não só para desbancar a solenidade desses monumentos da nossa memória, mas também como um disfarce necessário para boa dose de melancolia —a melancolia de um "talvez nada disso precisasse ter sido assim".
No final das contas, ao recontar histórias da Bíblia, ou da antiguidade clássica, Tchápek não está inventando uma nova versão "apócrifa", mas relevando que o "original" já era apócrifo também. A autoridade, ou autenticidade desses grandes textos, sua predominância cultural, nos faz esquecer uma dimensão primariamente literária, que Tchápek traz à luz mais uma vez.
Para nós, hoje, estratégias como essa fazem pensar em Borges e em alguns aspectos de Calvino. Mas Tchápek morreu sem ler estes seus precursores do futuro; do passado, transformou as Vidas Imaginárias de Marcel Schwob numa influência, entre outras, do pós-romantismo francês. O jovem Tchápek, aliás, traduziu para o tcheco uma antologia de poesia francesa do século 19, num volume totêmico para a poesia tcheca moderna. Anos mais tarde, já maduro, ele se voltaria para a cultura inglesa. Mais do que qualquer outro, quem se faz escutar nas inúmeras vozes dessas Histórias Apócrifas é o espectro do poeta inglês Robert Browning, um dos maiores nomes da literatura vitoriana. Os diálogos de Luciano ficam mais atrás, nessa tradição.
Contra este pano de fundo, Histórias propõe uma outra experiência, única. Só uma reprodução na íntegra poderia dar a idéia do que se passa em diálogos como "Sobre a Decadência dos Tempos", em que um casal de velhinhos da idade das cavernas lamenta os novos costumes dos jovens —como fazer comércio com os estrangeiros ("A gente nunca deve meter-se com estrangeiros. É uma sabedoria ancestral... todos os estrangeiros devem ser atacados e degolados!"), ou pintar bisões nas paredes ("isso não pode durar muito"); ou "Tersites", onde o mal-humorado soldado grego reclama contra a baixa luta de interesses que faz mover a Guerra de Tróia; ou "Sobre os Cinco Pães", onde um padeiro da Palestina protesta contra o milagre da multiplicação: "Esse homem, ele simplesmente levanta os olhos para o céu e, assim, sem mais nem menos, tem pão para cinco mil pessoas... Não tem despesa alguma, não tem trabalho nenhum. Então é claro que pode ficar distribuindo pão de graça..."
Em cada um desses casos, a voz que fala e que incrimina é, ao mesmo tempo, sua autocondenação —tecnicamente, é o que se chama de ironia. Mas a ironia corta em dois sentidos: condena, igualmente, a história transmitida.
São ambições altas, por trás de toda graça; mas nada disso faz diminuir o prazer da leitura —"a leitura mais agradável que eu conheço", na opinião de Milan Kundera. Se essas histórias têm como artifício a idéia, não inteiramente para ser levada a sério, de que a "verdadeira" história é esta, e não a que conhecemos, apontam também para uma outra dimensão, característica de Tchápek. É o que os tchecos chamam de lidkost, ou qualidade humana do espírito. Contra os superlativos e os super-homens, Tchápek é um cultuador de pequenos gestos e pequenas percepções. Contra o expressionismo e contra o realismo, ambos concentrados sobre que há de excepcional na realidade, ele nos oferece uma literatura em escala cotidiana, uma literatura "menor", num sentido não-metafísico.
Historicamente, são os ideólogos que reescrevem a história. Tchápek também, mas ele a reescreve ironicamente, e de todas as figuras a ironia é a que menos se presta como instrumento de dominação. O quase-herói improvável dessas Histórias é Pilatos, quando explica a José de Arimatéia: "há mais verdades nos homens do que nas palavras. Preocupam-me mais os homens que as verdades deles. E nisso também existe um credo; para isso também se torna necessária uma alma e um entusiasmo. Eu creio. Creio, sim, de modo absoluto e sem dúvida alguma. Mas o que é verdade?"
Melhor ainda do que nas Histórias Apócrifas é em Coisas Íntimas (1925) que se revela aquilo que, por falta de outra palavra, poderia ser descrito como a simpatia humana de Tchápek. São pequenos textos sobre os gatos, o prazer de receber cartas, o fascínio do fogo, as tecnologias domésticas, a dificuldade de encontrar um livro certo quando se está com gripe, um elogio aos desastrados, uma ode à indolência.
É aqui, também, que se encontra seu breve ensaio "Sobre a Literatura". Depois de rever, em lindas descrições, o trabalho diário do padeiro, do fazendeiro, do pintor de paredes e outros, guardados na memória desde a infância, Tchápek descreve a si mesmo, sentado na varanda, escrevendo. Nenhum menino viria observar o trabalho do escritor. Mas —diz ele, em palavras que são praticamente o seu credo e que ultrapassam, ou quase, as ironias—, "eu gostaria que todas aquelas coisas que eu costumava ver estivessem também no meu trabalho: os golpes sonoros do ferreiro e as cores do pintor de paredes, a paciência do alfaiate e o lascar cuidadoso do pedreiro, o corre-corre do padeiro, a humildade dos pobres, e toda força vigorosa e o talento que homens majestosos emprestam ao trabalho, frente aos olhos assombrados e maravilhados de uma criança.
O credo de Pilatos e o do escritor podem ser combinados a uma outra imagem, para formar um perfil do seu autor. Além da literatura e da política, a jardinagem foi sua outra grande paixão. Não o cultivo das rosas, "coisa de diletante", como ele escreveu num dos textos do Anuário do Jardineiro (1929), mas algo "que tem raízes mais fundas, mais dentro do chão." Coube à sua mulher, Olga Scheinpflugová, escrever aquela que é, talvez, de todas, a imagem mais definitiva de Tchápek. Ela resume, em poucas palavras, a única forma de felicidade ainda possível para um homem que já percebeu tudo e já viveu todas as idades: "ele nunca foi mais feliz do que quando enfiava as mãos fundo na terra, com a bunda virada para o céu."

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