São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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Os álibis da razão cínica

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Parece que o Movimento Social Italiano —partido herdeiro do fascismo— não é mais fascista. Foi decidido assim em seu último congresso. Chegaram até a proclamar que, de agora em diante, serão antifascistas, filhos da tradição democrática do pós-guerra italiano. Desistiram do braço erguido, das camisas pretas e dos gritos de "Eia Eia alalá".
Alguns provavelmente permanecerão agarrados aos antigos símbolos e —quem sabe— farão secessão, constituindo, na extrema direita, um partidinho extremista. Segundo as más-línguas, é assim mesmo que hoje precisa fazer: reunir o partido ao redor de uma imagem moderada e centrista e deixar de propósito que uma franja extremista segure e eventualmente transfira os votos dos nostálgicos.
Os antigos comunistas, aliás, fizeram o mesmo: abjuraram qualquer intenção revolucionária, foram para o centro e deixaram, para segurar as pontas, um ou alguns pequenos partidos nostálgicos.
É curiosa esta vontade, quase universal, de ir para ao centro. Pois, de fato —não só na Itália—, o centro é deserto: os que o ocupavam perderam credibilidade, apareceram como aproveitadores cínicos e crônicos da coisa pública, de Bettino Craxi a Fernando Collor de Mello. Podia-se imaginar que os extremos se aproveitassem substancialmente desta situação. Ora, eles obtiveram às vezes algumas vantagens eleitorais, mas nada de mais. Não conseguiram se instalar no poder. Para chegar ao poder precisa ter cara de centro. Mas qual é a cara do centro que o eleitor gosta hoje?
Aparentemente, não é a réplica da gestão interesseira e corrupta já denunciada. A imagem do centro que todos os políticos parecem procurar na última década —a imagem que seduz a maioria dos eleitores— está sendo inventada.
Nostálgicos de paixões e ideais políticos, podemos pretender que o novo centro chamado a governar em nossos países ocidentais seja o fruto de um desastre moral.
À primeira vista, o eleitor não quer mais discursos sobre um bem arduamente definido, ainda menos sobre o bem do próximo. Só parece querer a esperança, se não a garantia de um crescimento um pouco estabilizado, uma gestão que ofereça a chance de prosperar. Se quer um mínimo de justiça social, é sobretudo para manter a paz na esquina de casa. Uma moral das necessidades básicas e do consumo agradável substituiria assim toda ética do desejo. Em termos hegelianos, teria chegado mesmo o fim da história. Estamos cronicamente insatisfeitos, mas seria só uma questão de objetos que nos faltam. Nossa infelicidade não dependeria mais de uma alquimia errada das relações sociais, mas de uma má distribuição dos objetos de gozo. E esta, dizem, pode ser melhorada.
Mas poderíamos pensar as coisas de outro jeito. Com otimismo, poderíamos supor que estamos enfim realizando o racionalismo ilustrado próprio a nossa cultura moderna. O novo centro, para o qual todos convergem, seria também o lugar da razão por excelência, onde idealmente dá para discutir tudo, onde os antagonismos sempre podem se resolver na negociação.
Neste centro (habermasiano), todos os encontros e as alianças parecem possíveis, Fernando Henrique com Antônio Carlos Magalhães, Newt Gingrich com Bill Clinton, e mesmo Berlusconi com os (ex-)fascistas de Fini, por que não? Ao contrário, o fato deles estarem juntos prova a centralidade deles todos, demonstra a possível existência de soluções discutidas, negociadas entre seres razoáveis.
Talvez os coitos abomináveis da vida política atual dêem testemunho de um triunfo definitivo —e há tempo esperado— da razão. Atrás das idéias, dos projetos, dos conflitos, encontram-se homens que se reconhecem como semelhantes e pretendem ter em comum, no mínimo, a razão.
Assim, sentam os inimigos nas mesas de negociação e falam. Nada, nenhuma oposição deveria resistir ao poder civilizador do diálogo, pois acredita-se que cada um, por ser humano, compartilha com todos os outros o suficiente para entendê-los e ser entendido.
Quem recusar se sentar na famosa mesa, ou levantar indignado, interrompendo o diálogo (por exemplo, abandonando uma aliança de governo ou negando a confiança e produzindo uma crise), é o único verdadeiro acusado.
O imperativo moral a priori da época é dialogar e negociar.
Ora, nesta visão do centrismo hodierno, não há por que celebrar triunfalmente. Pois, de fato, as mesas de negociação só são possíveis porque nelas se discute pizza. Em outras palavras, só somos "racionais", no sentido moderno, à condição de sermos razoáveis e, para ser razoável, é preciso tornar negociável toda exigência, reivindicação e esperança. É preciso, em suma, que todo valor seja suscetível de concessões, arranjos, compromissos. O desastre moral denunciado acima seria então a condição prévia da racionalidade centrista. Pois, para esta é necessário que os valores sejam quantidades: uma fatia de pizza por outra.
Quem não discute na mesa de negociação é abstratamente, por si só, a encarnação do mal. Pouco importa o motivo pelo qual ele levanta ou se senta. Tanto vale um sérvio assassino ou um negociador da Cruz Vermelha impaciente: quem, defendendo um valor positivo, não estiver disposto a negociá-lo, peca contra a razão, pois a razão é supostamente o diálogo, a negociata. Quem não é razoável não é racional, peca portanto contra sua própria humanidade.
Não se trata de tomar as dores dos extremismos contra a mesa de negociação. O problema é que a razão hodierna, recusando como extremismo qualquer posição que não seja negociável, perde a capacidade de discriminar entre valores positivos diferentes. Perde até a capacidade de reconhecer seus inimigos, pois inimigos são —abstratamente— "os extremistas", aqueles que não sentam para discutir, sejam quais forem os valores que eles defendem.
Paradoxalmente —como observava Christopher Lasch (Mais! de 8/01/95)—, nesta situação, o extremismo se multiplica e se radicaliza cada vez mais. Por um lado, se a proposta da razão atual é o compromisso, quem acreditar em valores positivos, e quiser que sejam aceitos ou hostilizados (tanto faz), mas não negociados, será por isso mesmo acusado de extremismo. Por outro lado, ele será mesmo extremista, pois só lhe sobrará recorrer a meios extremos para que sua afirmação seja reconhecida em sua integridade.
A retórica das afirmações que não podem ou querem ser negociadas será assim —embora variável— sempre enfática. Por exemplo, o inimigo, que a razão hodierna desconhece como inimigo, convidando-o para um papo amistoso, se tornará terrorista. A boa vontade da razão negociadora poderá convidar terceiros que se odeiam a se abraçarem como semelhantes, e empurrá-los assim a se exterminar mutuamente ainda mais, para reafirmar sua diferença negada. Os próprios sujeitos de nossa razão, exasperados por um diálogo que sempre parece supor um possível terreno neutro e comum, proclamarão suas identidades como bandeiras. A última novidade, neste sentido, aqui nos EUA, é o uso, pelas gangues, do branding (marcas de gado a ferro quente, indeléveis); é uma maneira de dizer: o que eu sou, não se discute, me engaja de tal forma que nem querendo poderia apagá-lo ou negociá-lo.

P.S. É comovedora a celebração nestes dias do cinquentenário da liberação de Auschwitz. Em primeiro lugar, porque a razão hodierna, para facilitar sua natureza negociadora, naturalmente, prefere o esquecimento à memória. Em segundo, porque as diferentes polêmicas ao redor da celebração, as tentativas de recuperação política são exemplares de um falso espírito comunitário ao qual é bom que a memória resista.
Por exemplo, quando Giorgio Rumi, no "Osservatore Romano", jornal do Vaticano, pretende diluir o genocídio no drama de todas as vítimas de todos os tempos e regimes, de novo triunfa o razoável como racional. O mal, ele diria com Bernard-Henri Lévy em seu recente livro (que já critiquei nesta coluna, em 8/01/95), são os fanatismos assassinos, sem distinção. Ora, a memória ajuda a entender que o mal e o bem podem ser históricos, culturais; certamente não são absolutos, mas tampouco se definem de maneira abstrata.

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