São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995 |
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O historiador da Inglaterra de Henrique 8º
RENATO JANINE RIBEIRO
Elton se especializou num campo que toscamente designaríamos por história administrativa —mas que vai muito além desta. Na verdade, o trabalho que o empolgou, em sucessivos livros, foi a obra de Thomas Cromwell, o ministro de Henrique 8º que construiu laboriosamente a Igreja Anglicana, monitorando passo a passo a ruptura com a Sé romana. Na verdade, Cromwell não foi o mesmo antes e depois de Elton. Na história inglesa, o Cromwell mais conhecido é o segundo, o líder revolucionário da década de 1640 e o ditador dos anos 1650, Oliver. Recorda-se menos seu tio-bisavô, Thomas. Mas foi este homem de origens obscuras quem deitou as bases para o forte Estado inglês da modernidade. A história é mais ou menos a seguinte. Ao começar a década de 1520, Henrique 8º tem como principal ministro o cardeal Wolsey, que além disso é legado papal. O prelado assim reúne em suas mãos o poder da Igreja e o do Estado, mais a serviço de Roma ou de si próprio que da Inglaterra ou de seu rei. É a Reforma protestante que vai proclamar a real independência do país, proibindo qualquer jurisdição externa (leia-se: romana) sobre a ilha. Em poucos anos, assim, varrem-se séculos de mágoas, desde que João sem Terra tivera que humilhar-se, entregando sua coroa ao papa. Todo um programa se vai delineando. Proíbe-se apelar a Roma de sentenças inglesas; proclama-se a supremacia do rei sobre a Igreja que conhecemos por Anglicana; extingue-se o celibato clerical, dissolvem-se os mosteiros e suprimem-se as ordens monásticas. Comandada por Cromwell, em poucos anos se consuma uma revolução, de cima para baixo, mas nem por isso menos importante. É esta revolução Tudor no governo o tema e o título do primeiro grande livro de Elton, editado em 1953. Ele começa a mostrar que as mudanças administrativas que ocorrem naquele país atrasado que é a Inglaterra do século 16 na verdade obedecem a um desígnio político de primeira monta, que consiste em construir um Estado forte. Thomas Cromwell é personagem interessantíssimo. De seus inimigos, o cardeal Reginald de La Pole acusou-o de recomendar a leitura de Maquiavel, o autor demoníaco por excelência; o bispo católico Stephen Gardiner atacou-o por dizer que a vontade do rei era suficiente para promulgar leis. Seu inimigo mais manso e ilustre, o mártir católico Thomas Morus, deu-lhe o seguinte e inútil conselho: Mestre Cromwell, quando aconselhardes o rei, dizei-lhe sempre o que deve e nunca o que pode fazer. Porque, se o leão conhecesse a própria força, ninguém mais estaria seguro. Pois foi justamente dar consciência ao leão de sua força o que fez a grandeza e perdição de Cromwell. Rompendo com Roma, a Inglaterra proclamou-se um império —diríamos hoje, um Estado soberano. Um nacionalismo eficaz se constituiu, tendo como seu primeiro grande líder justamente a rainha Isabel (1558-1603), filha de Ana Bolena —da mulher por quem Henrique 8º, apaixonado, fez melhores ouvidos a Cromwell do que faria se não a conhecesse. Mais que isso, o nacionalismo inglês se forjou, nos séculos 16 e 17, aliado à religião protestante. Cromwell, embora fosse decapitado por ordem de seu rei Henrique em 1540, teve todo o êxito póstumo que um líder político pode desejar. Talvez o livro mais acessível de Elton seja seu Reform and Reformation - England, 1509-1598, de 1977. É uma obra séria e mesmo alentada (420 páginas), mas agradável, que joga com os dois sentidos que a palavra reforma pode ter, o de reformas na sociedade e no Estado ( reform) e de Reforma na Igreja ( Reformation). Nos 50 anos que ocupam os reinados de Henrique 8º, Eduardo 6º e Isabel, o Estado e a sociedade inglesa mudaram decididamente. A força que naquele país sempre teve uma espécie de classe média —os yeomen que na Guerra dos Cem Anos haviam exterminado, com suas flechadas potentes, a aristocracia francesa— pôde então abrir espaço para contestar as tentativas de absolutismo régio, ao mesmo tempo que permitia instituir um mundo governado pelo capital, com seus traços inéditos na história: Revolução Industrial, liberdade de expressão, mundialização da economia. Hostil ao marxismo —homem de direita, que o nazismo havia feito mudar de país e de nome (era alemão e fora registrado como Gottfried Ehrenburg)—, ainda assim o trabalho de Elton serve a todo historiador, mesmo de esquerda, que pretenda estudar como a Reforma foi muito mais que uma intriga de alcova causada pela paixão de Henrique 8º por Ana Bolena. Texto Anterior: Um retrato psicológico de Oswaldo Aranha Próximo Texto: Os álibis da razão cínica Índice |
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