São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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O historiador da Inglaterra de Henrique 8º

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Inglaterra tem historiadores de toda a sorte e do maior calibre. Podemos elencar marxistas, como Christopher Hill e Eric Hobsbawm, conservadores como Trevor Roper, autor de um belo livro sobre a caça às bruxas, inventores de novos temas, como Keith Thomas, de quem se conhece a Religião e o Declínio da Magia e O Homem e o Mundo Natural, e estudiosos da cultura, como Peter Burke, que ora está no Instituto de Estudos Avançados da USP. Mas certamente um dos menos conhecidos entre nós, dos grandes nomes da história inglesa, foi Sir Geoffrey Elton, que faleceu em dezembro de 1994, aos 73 anos.
Elton se especializou num campo que toscamente designaríamos por história administrativa —mas que vai muito além desta. Na verdade, o trabalho que o empolgou, em sucessivos livros, foi a obra de Thomas Cromwell, o ministro de Henrique 8º que construiu laboriosamente a Igreja Anglicana, monitorando passo a passo a ruptura com a Sé romana. Na verdade, Cromwell não foi o mesmo antes e depois de Elton.
Na história inglesa, o Cromwell mais conhecido é o segundo, o líder revolucionário da década de 1640 e o ditador dos anos 1650, Oliver. Recorda-se menos seu tio-bisavô, Thomas. Mas foi este homem de origens obscuras quem deitou as bases para o forte Estado inglês da modernidade. A história é mais ou menos a seguinte.
Ao começar a década de 1520, Henrique 8º tem como principal ministro o cardeal Wolsey, que além disso é legado papal. O prelado assim reúne em suas mãos o poder da Igreja e o do Estado, mais a serviço de Roma ou de si próprio que da Inglaterra ou de seu rei. É a Reforma protestante que vai proclamar a real independência do país, proibindo qualquer jurisdição externa (leia-se: romana) sobre a ilha.
Em poucos anos, assim, varrem-se séculos de mágoas, desde que João sem Terra tivera que humilhar-se, entregando sua coroa ao papa. Todo um programa se vai delineando. Proíbe-se apelar a Roma de sentenças inglesas; proclama-se a supremacia do rei sobre a Igreja que conhecemos por Anglicana; extingue-se o celibato clerical, dissolvem-se os mosteiros e suprimem-se as ordens monásticas.
Comandada por Cromwell, em poucos anos se consuma uma revolução, de cima para baixo, mas nem por isso menos importante.
É esta revolução Tudor no governo o tema e o título do primeiro grande livro de Elton, editado em 1953. Ele começa a mostrar que as mudanças administrativas que ocorrem naquele país atrasado que é a Inglaterra do século 16 na verdade obedecem a um desígnio político de primeira monta, que consiste em construir um Estado forte.
Thomas Cromwell é personagem interessantíssimo. De seus inimigos, o cardeal Reginald de La Pole acusou-o de recomendar a leitura de Maquiavel, o autor demoníaco por excelência; o bispo católico Stephen Gardiner atacou-o por dizer que a vontade do rei era suficiente para promulgar leis. Seu inimigo mais manso e ilustre, o mártir católico Thomas Morus, deu-lhe o seguinte e inútil conselho: Mestre Cromwell, quando aconselhardes o rei, dizei-lhe sempre o que deve e nunca o que pode fazer. Porque, se o leão conhecesse a própria força, ninguém mais estaria seguro.
Pois foi justamente dar consciência ao leão de sua força o que fez a grandeza e perdição de Cromwell. Rompendo com Roma, a Inglaterra proclamou-se um império —diríamos hoje, um Estado soberano. Um nacionalismo eficaz se constituiu, tendo como seu primeiro grande líder justamente a rainha Isabel (1558-1603), filha de Ana Bolena —da mulher por quem Henrique 8º, apaixonado, fez melhores ouvidos a Cromwell do que faria se não a conhecesse.
Mais que isso, o nacionalismo inglês se forjou, nos séculos 16 e 17, aliado à religião protestante. Cromwell, embora fosse decapitado por ordem de seu rei Henrique em 1540, teve todo o êxito póstumo que um líder político pode desejar.
Talvez o livro mais acessível de Elton seja seu Reform and Reformation - England, 1509-1598, de 1977. É uma obra séria e mesmo alentada (420 páginas), mas agradável, que joga com os dois sentidos que a palavra reforma pode ter, o de reformas na sociedade e no Estado ( reform) e de Reforma na Igreja ( Reformation). Nos 50 anos que ocupam os reinados de Henrique 8º, Eduardo 6º e Isabel, o Estado e a sociedade inglesa mudaram decididamente.
A força que naquele país sempre teve uma espécie de classe média —os yeomen que na Guerra dos Cem Anos haviam exterminado, com suas flechadas potentes, a aristocracia francesa— pôde então abrir espaço para contestar as tentativas de absolutismo régio, ao mesmo tempo que permitia instituir um mundo governado pelo capital, com seus traços inéditos na história: Revolução Industrial, liberdade de expressão, mundialização da economia.
Hostil ao marxismo —homem de direita, que o nazismo havia feito mudar de país e de nome (era alemão e fora registrado como Gottfried Ehrenburg)—, ainda assim o trabalho de Elton serve a todo historiador, mesmo de esquerda, que pretenda estudar como a Reforma foi muito mais que uma intriga de alcova causada pela paixão de Henrique 8º por Ana Bolena.

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