São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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A avó da Aids faz 500 anos com 'boa saúde'

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Meio milênio depois de sofrer com uma nova e letal doença transmitida sexualmente, a civilização ocidental ainda não aprendeu como reagir a esse tipo de problema.
Faz 500 anos que a Europa sofreu a primeira epidemia de sífilis, uma doença venérea causada por uma bactéria espiroqueta, o Treponema pallidum.
As reações foram muito parecidas com o que aconteceria muito tempo depois com outra doença, causada por outro tipo de micróbio, o vírus HIV. Assim como aconteceu com a Aids, preconceitos e falta de informação fizeram parte da carreira da sua "avó".
"Por causa da severidade de seu impacto, doenças epidêmicas poucas vezes puderam ser acomodadas nas estruturas emocionais com as quais as sociedades viviam", diz o historiador Richard Evans, da Universidade de Londres.
Evans se pergunta, meio de brincadeira, se não haveria uma "dramaturgia" que tende a se repetir com as epidemias novas.
Por exemplo, é comum achar que a transmissão de doenças é feita de pessoa a pessoa (e nem sempre é o caso). Também é comum a fuga do local infectado com a nova "peste" —como fizeram turistas americanos ao saber que a Aids era comum no Haiti.
É também comum achar bodes expiatórios e estigmatizá-los. Já as vítimas acham que há algum complô externo contra elas.
A aceleração do tempo histórico no século 20, e os óbvios avanços da ciência, permitiram aos pesquisadores comprimir a história da Aids em bem menos tempo. Mas o que aconteceu com a sífilis permanece sendo o modelo.
Hoje as duas doenças coexistem e tendem a se concentrar nos mesmos grupos sociais. A sífilis não atinge mais a aristocracia ou os literatos e artistas; a Aids tende a longo prazo a deixar de se ser típica de "grupos de risco" como homossexuais para ser mais uma doença da pobreza.
Os cientistas ainda não sabem dizer com certeza se a sífilis foi importada das Américas para a Europa, ou se já existia ali e apenas se manifestou de modo mais característico em 1495.
Uma das teorias é que foram os marinheiros de Cristovão Colombo, voltando de sua "descoberta" da América, que introduziram o Treponema pallidum na Europa. Essa teoria vem de 1539, segundo o historiador William McNeill, autor de um livro seminal sobre o papel das doenças na história humana, "Plagues and Peoples" ("Pragas e Povos").
Outros pesquisadores acreditam que a doença já existia e era confundida com a lepra devido aos sintomas parecidos, como lesões na pele. Recentemente foi divulgada a teoria de que os viking teriam a doença já há mil anos.
É difícil saber, pois as descrições antigas dos sintomas não são precisas o suficiente para um diagnóstico exato. Lesões em ossos de índios da época pré-colombiana seriam uma evidência da existência da sífilis na América.
Foi na cidade italiana de Nápoles, então cercada pelo exército francês do rei Carlos 8º, que apareceu a primeira epidemia. Como era previsível, foi chamada de "doença italiana" pelos franceses, e de "doença francesa" pelos italianos.
O nome sífilis foi cunhado por um italiano, meio poeta, meio pesquisador, Girolamo Fracastoro (1483-1553), no poema "Syphilis sive Morbus Gallicus" (Sífilis ou Doença dos Gauleses).
Fracastoro acreditava que doenças infecciosas eram transmitidas por sementes invisíveis. Nesse sentido ele foi uma espécie de avô da bacteriologia.
Só no século 20 que se descobriu a bactéria causadora da sífilis. Uma trinca de alemães deu um golpe brutal nessa espiroqueta.
Fritz Schaudinn descobriu a bactéria causadora em 1905. No ano seguinte Augustus von Wassermann desenvolveu um exame de sangue para detectar a doença. E em 1909 Paul Ehrlich descobriu o primeiro tratamento eficaz usando um composto a base de arsênico.
A Aids teve descobertas igualmente rápidas. Os casos apareciam cada vez mais na década de 80, e já em 1983 foi isolado o vírus. Falta apenas uma cura, que não significará porém que a doença "desaparecerá".
A sífilis, apesar de plenamente curável com antibióticos, sofreu um aumento de 132% de 1985 a 1990 entre os negros americanos. É o tipo de dado que tende a acirrar preconceitos, mas que mostra a deterioração da qualidade de vida nas grandes metrópoles dos EUA.
Epidemias de doenças venéreas têm algo diferente das outras, diz a pesquisadora Megan Vaughan, mesmo levando-se em conta que todas são de algum modo "socialmente causadas e socialmente construídas"; uma análise puramente médica não dá conta de seu entendimento.
Isso ajuda a explicar por que a cura descoberta por Ehrlich chegou a ser criticada, pois "encorajaria o pecado". Certamente alguém dirá o mesmo quando a cura da Aids for encontrada.

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