São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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Em defesa da leitora

PAULO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

"Nossa pálida razão termina por ocultar o infinito"
Rimbaud

Foi com grande esforço que consegui chegar ao final do artigo de Marilene Felinto, publicado na semana passada no Mais! ("Mulheres que lêem bobagens").
Coerente com sua crítica aos best sellers, escreveu um texto sem começo, meio ou final. Mas, acostumado que sou a textos ocultos e alquímicos, creio haver conseguido decifrar seu pensamento; ele estava ali, diante de todos, na frase impressa em tipos maiores no meio do artigo: "as mulheres não são mais burras que os homens; são só mais ridículas".
Afora o comentário acima, não me cabe analisar o artigo de Marilene Felinto. E este texto não é resposta a uma crítica; primeiro, porque não fui atacado (o artigo cita uma típica leitora de "Maktub": jovem profissional, mãe competente, etc. E me chama de "perigoso", o que é um elogio).
Segundo, porque jamais respondo ou respondi a críticas —sejam elas a favor ou contra. Venho ocupar este espaço para defender uma espécie que antes era considerada em extinção, e agora, como conseguiu sobreviver, tem sido sistematicamente atacada: o público leitor.
Há algum tempo, queixava-se que brasileiro gostava de futebol, televisão, e não lia nunca. Depois, descobriu-se que não era bem assim; eu mesmo já tive o prazer de ver dois livros meus ultrapassarem a casa do milhão de exemplares vendidos, o que significa que o brasileiro lê muitíssimo mais que o público de diversos países (para se ter uma idéia, o livro mais recente que vendeu um milhão de exemplares na França foi "Papillon", em 1972).
Face à realidade irrefutável, a "elite" cultural, querendo continuar "elite", proclama: "os leitores são burros". Se o leitor brasileiro estivesse lendo Thomas Mann ou Kierkegaard, o comentário seria: "o leitor brasileiro só lê importados". E daí por diante.
Por enquanto, a única contribuição que "intelligentsia" brasileira tem dado —além de meter o pau e chamar o leitor de burro— é criar uma nova corrente de literatura, batizada de "esoterismo". Esta categoria não existe em nenhum país do mundo, já que a palavra "esotérico" vai de encontro a tudo que significa lista de mais vendidos ("esotérico: ensinamento de escolas da Antiguidade grega, administrado a um círculo restrito e fechado de ouvintes", cf. "Novo Dicionário Aurélio"). Quem sabe, no futuro, o mundo se curve ao Brasil, e outros países adotem esta classificação. Se assim for, num futuro mais longínquo ainda, os "esotéricos" serão estudados como os românticos, os parnasianos, os barrocos, etc.
Descobre-se então que, no Brasil, a maioria dos compradores de livros é constituída de mulheres. É bom frisar: todas as pesquisas feitas nos mais diversos países, mostra a mesma realidade: a maioria dos compradores de livros é constituída de mulheres. Sempre foram elas, anonimamente ou não, que criaram a infra-estrutura do pensamento humano, por mais que Marilene Felinto não concorde (ela pergunta em seu artigo: "por que mulher lê tanta besteira?").
Marcel Proust disse: "A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em buscar novas paisagens, mas novos olhos". Embora isto não esteja claro para a "intelligentsia", o fato é que a sensibilidade feminina está milhões de anos-luz à frente do racionalismo masculino. Enquanto os homens saíam para a caça, as mulheres ficavam nas cavernas, observando o Universo; graças a esta contemplação —que nada tinha de passiva— foi possível estabelecer uma relação entre os caroços que caíam no solo e as plantas que surgiam; estava descoberta a agricultura, que mudou radicalmente a cultura humana (estas descobridoras foram homenageadas como deusas: Ceres, Cibele, etc).
O pensamento religioso do ano 1º era ditado exclusivamente por homens, mas as mulheres sabiam muito bem onde estava a revolução: quando todos abandonaram Jesus, elas permaneceram ao seu lado —conforme o oitavo passo da Via Sacra. Aliás, se Pilatos tivesse escutado o que sua mulher dizia, o drama da Paixão não teria acontecido. O mesmo vale para Júlio César: foi advertido por sua mulher a não ir ao Senado no dia de seu assassinato.
Nas duas ocasiões, as mulheres tinham lido seus sonhos, e quase mudam a história do mundo: mas também naquela época, o conceito de que "mulher só lê besteira" predominou: e o resultado todos conhecemos.
Na Idade Média, enquanto os homens se perdiam num emaranhado de teorias a respeito de Deus, as mulheres procuravam vivenciar a experiência prática da comunhão com a divindade. Evidente que mereceram mais do que uma simples descompostura de Marilene Felinto: foram queimadas vivas como bruxas.
E não precisamos ir tão longe: foi o grito das mulheres que acordou o mundo inteiro para os Beatles. Desta época eu me lembro bem do comentário: "Não passam de umas histéricas", dizia a intelligentsia.
Pois bem: hoje as mulheres se interessam por anjos, espiritualidade, novos horizontes de pensamento —o que não entra pela garganta da intelectualidade convencional, sempre a reboque do pensamento revolucionário. Um dia —como já aconteceu no passado— este pensamento prevalecerá. Mas até que isto aconteça, é preciso enfrentar os comentários que ridicularizam qualquer passo dado fora do "manual".
É possível que a este artigo siga-se uma réplica, sempre com citações de grandes autores (que terminam avalizando coisas que eles, coitados, nem sonharam). Afinal, os críticos não estão acostumados a ouvir críticas. Mas aviso de antemão, que minha participação nesta polêmica encerra-se aqui.
Continuem atacando os escritores, mas deixem o público em paz.

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