São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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DARCY, O BRASILEIRO

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA REVISTA DA FOLHA

Darcy Ribeiro - Aqui estou numa praia carioca, nesta casa posta junto ao mar, dialogando comigo. Contente da saúde que volta e da lucidez que me estão permitindo concluir o livro que tanto quero fazer. Acabei de mudar o nome dele. Em vez de "A Gestação do Brasil" vai se chamar "O Povo Brasileiro". Acho que é meio pretensioso este título, mas o tema do livro é mesmo como se construiu o povo brasileiro.
A única coisa ruim aqui é o espelho. Eu olho para mim e não gosto. Estou achando minha cara muito pequenininha. Eu tinha uma cara grande, o cabelo dava a impressão de uma pessoa respeitável, um carão. Agora é uma carinha de porcaria, muito magrinha. Essa cara me dá grande tristeza. Eu faço a barba e fico danado comigo e com saudade da cara que eu tinha. As minhas amigas dizem que eu não estou feio, mas estou me achando horroroso.
Folha - Como era o menino Darcy e o mundo em que passou sua infância?
Darcy - Cresci em Montes Claros, um lugar ótimo para ser criança. A cidade teria três mil habitantes. Todo mundo se conhecia e todo mundo tomava conta de mim, porque sabiam que eu era um perigo. Eu fiz duas coisas danadas. Uma não é publicável em jornal: um concurso de punheta.
O bispo ficou furioso. Achei durante algum tempo que aquilo era uma indicação da minha lucidez, que eu tinha rompido com a religião e alcançado uma visão mais racional do mundo. Mas não era nada disso. O fato é que eu não queria ser Silveira, a família da minha mãe, de gente pia, religiosa. Queria ser Ribeiro, que era uma gente ruim, ganhadores de dinheiro. Para isso fiz o papelão.
Outro papelão, que ficou conhecido na cidade, aconteceu depois de eu presenciar um balanço da farmácia do meu tio. Um homem lá disse: "Que exagero, tanto azul de metileno, dava para pintar o oceano Atlântico". Eu nunca tinha visto o oceano Atlântico. Roubei um quilo do azul de metileno, chamei meu melhor amigo e disse para ele: "Isso dá para pintar o oceano Atlântico". Fiquei entusiasmadíssimo. A coisa mais parecida com o oceano Atlântico que tinha na cidade era o reservatório de água. Fomos lá e ficamos um xingando a mãe do outro, com medo de que fosse venenoso. Mas acabamos jogando. A água ficou toda azul, eu cheguei em casa e levei uma surra.
Folha - Foi, então, uma infância feliz?
Darcy - Foi uma infância feliz. Fui órfão de pai aos três anos, o que é muito confortável, já que não houve quem me domesticasse. Fui feito dessa ausência e de uma outra, que é não ter filhos. Como não fui domesticado e não domestiquei ninguém, fiquei com um espaço de liberdade que poucos têm.
Folha - Por que o interesse inicial pela medicina?
Darcy - Acho que por ter um tio médico, com status muito grande. Fui para a Faculdade de Medicina, em Belo Horizonte, aos 17 anos. E ao chegar lá me encantei. Vinha de uma cidade pequena e as discussões políticas da grande cidade me fascinaram. Era o Estado Novo, 1940, os integralistas querendo me conquistar de um lado, os comunistas, de outro. Não entendia o que acontecia.
Minha primeira opção política foi pelo comunismo. O Prestes estava preso, era um herói. A biografia do Prestes pelo Jorge Amado teve um grande efeito sobre mim. Passei a frequentar aquilo ativamente. Um dia descobri a Faculdade de Direito e de Filosofia e passei a fazer mais cursos nessa área do que na Medicina.
Lembro que o único sábio de Belo Horizonte, que era Carlos de Campos, um filósofo formidável, me recebia e conversava comigo. Eu tinha 18 anos. Li um livro de divulgação de filosofia e fiquei encantado. Montes Claros nunca teve um Sócrates, nem Belo Horizonte!
O fato é que durante três anos eu tomei bomba em Medicina. E pensava seriamente em me suicidar. No diário daquela época escrevi: "Não decidi que ia nascer, decido hoje se vou viver". Até que eu "induzi" um poetinha que tinha lá, de costeletas, a se suicidar. Dizia que ele não tinha valor, que ele não tinha peito para se suicidar. E ele se suicidou. Então eu escrevi no diário: "Fulano se suicidou por mim, eu posso deixar disso". Isso mostra a brutalidade de um jovem de 19 a 20 anos.
Folha - O sr. escrevia alguma coisa nessa época, além do seu diário?
Darcy - Eu decidi nessa época escrever um romance. Escrevi um de 300 páginas. Hor-ro-ro-so! Chama-se "A Lapa Grande". É a história de um rapaz cego, apaixonado por uma prima. A história é a da volta da visão, que retorna como dor. A vista vai chegando e um dia, dentro de casa, ele começa a ver a luz. A mãe chega, pergunta o que está acontecendo, ele consegue ver a mãe e a acha muito feia!
Folha - O sr. tinha contato com intelectuais mais velhos?
Darcy - Eu convidei de São Paulo, para uma conferência no diretório estudantil, o sociólogo norte-americano Donald Pierson. Mostrei Ouro Preto e Mariana para ele, a prosa foi boa e eu o impressionei como jovem brilhante. Ele, então, me deu uma bolsa para estudar sociologia política em São Paulo. Anos depois ele se queixava, dizendo que tinha má pontaria: todo o jovem por quem se interessava, como o Florestan Fernandes e eu, acabavam se revelando comunistas... Ele queria ter criado um sociólogo como ele, de direita, e não conseguiu.
Folha - Como foi sua experiência em São Paulo?
Darcy - Foi aquele susto. Quando cheguei, fiquei logo muito ocupado para poder ver São Paulo. Organizava células comunistas. Passei a ser orientador da célula da Light. Era um estudante do PCB. Tanto que, quando me formei, o diretor da faculdade me obrigou a ler o meu discurso.
Foi a primeira grande tapeação que fiz na vida. Fui à casa do diretor e li, mas sem ponto nem vírgula. Era um bestialógico completo. Depois, li com a pontuação correta, e ele achou horroroso. Achou que eu tinha mudado o discurso.
Folha - Como era a cidade?
Darcy - Eu morei em muitos bairros, que hoje frequento com saudade e também com raiva. Por exemplo, na igreja da Consolação tinha uma bela praça, larga, com uma escola. Era um lugar em que eu namorava. Agora converteram num supermercado e numa passagem de metrô. E encheram a avenida São João com um viaduto horroroso. São os horrores de São Paulo. O Tietê e o Pinheiros, rios importantes, geográficos e bonitos, estão cheios de avenidas ao lado.
Todas as cidades do mundo amam os seus rios, Londres, Paris, Nova York. São Paulo é a única que não ama. O Pinheiros e o Tietê foram convertidos num fosso sanitário para carregar bosta de paulista. É uma coisa realmente lamentável. São Paulo nunca se deu confortos. Os paulistas têm orgulho da cidade que mais tem asfalto por habitante no mundo. Mas eu me lembro com saudade de Higienópolis, da rua Caio Prado, e dos lugares que eu vivi.
Folha - O sr. trabalhava em São Paulo?
Darcy - Arrumei um lugar de perito da Justiça do Trabalho. De vez em quando uma indústria queria demitir operários ou fechar uma unidade e eu ia lá ver se aquilo correspondia à realidade. Eu tinha estudado economia com o Simonsen, que chegou a me oferecer um empregão. Era a possibilidade de eu aderir à ordem, mas não queria, evidentemente. Tive uma outra possibilidade, que era trabalhar no Rio, com a equipe do Rodrigo de Mello Franco, no Patrimônio Histórico. E tinha a alternativa de estudar os índios, de fazer etnologia.
Mas o que eu queria mesmo era dirigir o "Hoje", um jornal comunista. O diretor, Câmara Ferreira, ia passar um ano fora, estudando na Rússia. Me ofereci, mas a direção do partido preferiu me "liberar" para os estudos. Diziam que precisavam de intelectuais e que eu deveria prosseguir meu trabalho universitário. Na verdade, o partido me jogou fora. Eu era agitador, era perigoso. Foi uma recusa que me fez sofrer muito. Fiquei numa situação contraditória: não era um renegado e não tinha sido expulso. Me considerava "licenciado". Fui estudar os índios e fiquei nessa postura vaga até 54, quando o suicídio do Getúlio fez minha cabeça.

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