São Paulo, quarta-feira, 8 de fevereiro de 1995
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Maluf não é mais prejudicial à saúde

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Primeiro, foi a lei tornando obrigatório o uso de cinto de segurança. Agora, é a proibição do fumo em restaurantes. A prefeitura está zelando pela saúde dos cidadãos.
O curioso é que essas decisões não parecem surgir como um ato discricionário, pessoal, caprichoso do prefeito Paulo Maluf. Cercado de uma aura administrativa, impessoal.
Pudera. Nos anos 70 e 80, a figura de Maluf era invasiva, insistente, insuportável. Maluf aparecia nos noticiários de televisão, com aqueles óculos grossos que pareciam eles próprios dois tubos de televisão colados na face, expondo com voz metálica e desagradável seus feitos e proezas.
Autoritário e subserviente, pegajoso e arrogante, antipático e alegre: por contraditórias que fossem, todas as características de Maluf pareciam destinadas a provocar execração do eleitorado.
A bajulação ao regime militar misturava-se com a pressa de suas ambições políticas. A democracia frustrou a estratégia malufista, no fundo vingativa e ácida, de conquista do poder.
Foi então que os especialistas em marketing político entraram em cena. O conselho foi simples. Maluf deveria desaparecer da propaganda eleitoral. Quanto menos fosse visto, quanto menos falasse, melhor.
Ele próprio, quando aparecia, dizia-se mais humilde. E estava mesmo mais humilde, com óculos de lentes não tão grossas, como a permitir que nossos olhos encontrassem os seus. O passar do tempo suavizou algumas arestas de sua personalidade; a voz, ainda metálica, embaçou-se ao longo das derrotas sucessivas.
Deu-se assim um processo de "despersonalização" da figura de Maluf. Tratava-se de abafar seu impulso maníaco pelo poder. Tratava-se de extinguir a chama demoníaca, o cheiro acre e insidioso, o gás letal, a obsessão compulsiva, o instinto vicioso e sugatório que o moviam. Apagou-se tudo o que nele houvesse de venenoso, de repulsivo, de mortal: tudo, enfim, que parecesse tabagístico. Maluf não é mais prejudicial à saúde.
A lei contra o fumo é uma vitória contra o próprio Maluf: mal, morte e veneno de outros tempos. Por isso, não surge como ato pessoal —embora contribua para dar destaque à prefeitura—, mas sim como ato legislativo. Não tem a marca de arbítrio e implicância que caberia numa decisão de Jânio Quadros, por exemplo.
"Prefeitura", palavra feminina, conjuga-se bem com a retórica de "amor" que tem dirigido as campanhas eleitorais de Maluf. Coraçõezinhos de plástico —com aquele cafajestíssimo "I Love Maluf", a palavra "love" trocada por um coração vermelho— foram distribuídos generosamente à população.
Luiza Erundina não foi maternal como poderia ser. O coração vermelho foi apropriado por Maluf. No auge das acusações e denúncias, não me lembro em que campanha eleitoral, Maluf justificou os gastos que fazia. Os recursos vinham todos da "bolsa de sua mãe", a bolsa de dona Maria Maluf.
Passada a tempestade jornalística, e passada a tempestade familiar (brigas de herança em que, segundo se diz, um irmão jogou um cinzeiro na cara do outro), reencontramos a maternalidade malufista e, claro, o trauma com cinzeiros. Pois o único efeito desse decreto antifumo é que não há mais cinzeiros nas mesas dos restaurantes. Quanto ao resto, fuma-se à vontade.
Temos, de qualquer modo, um Maluf paladino da saúde. Talvez seja errado considerar que obras públicas, viadutos e túneis sejam por si sós garantia de visibilidade para uma administração. Interferência no cotidiano, intromissões na vida pessoal dos cidadãos funcionam melhor como propaganda.
Só que, enquanto nos Estados Unidos as ações antifumo resultam de uma progressiva mobilização da sociedade civil —lá, um radicalismo quase maoísta legisla, como nos tempos da Revolução Cultural chinesa, o vocabulário e os hábitos dos cidadãos—, aqui, no Brasil, o Estado sempre se adianta em face da sociedade.
O decreto antifumo aparece antes de uma real consciência antitabagista na população. E esta, obediente, aprova-o, segundo as pesquisas de opinião pública. Mas não obedece. As ordens do poder público viram conselhos de mãe. É o que Maluf queria.
Cuida-se, sobretudo, da saúde da classe alta a que Maluf notoriamente pertence. A prefeitura se interessa pela vida dos frequentadores de restaurantes. Não quer que a classe dominante, já aliviada das ameaças de insurreição comunista, morra por falta de cinto num Subaru importado, ou pelas toxinas do Marlboro no restaurante Massimo.
A mortalidade infantil nas favelas, de qualquer modo, decresce. O que são verminoses, sarampos e diarréias se não males remediáveis pelo puro crescimento econômico e pela nova ordem liberal? Cuidamos de nossa classe. Ela precisa ser protegida. A infantilidade da burguesia paulistana, essa classe tão manhosa, tão mimada, tão dodói, encontra em Maluf a Erundina que não teve.

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