São Paulo, sábado, 11 de fevereiro de 1995
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'Don Juan' estréia sem unidade e frustra

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Poucos espetáculos alimentaram uma expectativa igual à de "Don Juan", no teatro brasileiro destes últimos anos. O texto de Otavio Frias Filho caminhava das primeiras influências pinterescas, dos diálogos secos de Harold Pinter, para uma dramaturgia mais popular; aliás, vale o registro, as montagens mais recentes de Harold Pinter, das peças antigas, vêm aproximando o autor britânico da comédia popular.
A crescente complexidade das personagens, já percebida em "Rancor", montagem anterior de Otavio Frias Filho, prometia seguir com a riqueza peculiar de don Juan. Também o humor começava a entrar por sua escrita, sinal da maior abertura às exigências dos "groundlings" shakespearianos, às exigências da geral, ainda que sem perder inteiramente um certo caráter de teatro de tese.
E os dois, diretor e autor, encontravam o protagonista mais adequado, quase perfeito, para o teatro que vinham procurando. Ney Latorraca é um ator de carisma, mais para comediante, mais para Procópio Ferreira, um deleite, enfim, para a geral, mas também em processo de enriquecimento, na direção do humor mais absurdo, quase triste, dos velhos filmes mudos. Foi o que se viu ao longo do tempo em "Irma Vap" e, no ano passado, em "O Médico e o Monstro".
"Don Juan" prometia assim uma reunião quase ideal, alimentava uma expectativa imensa, até que chegou o dia da estréia, sucessivamente adiada.

Sábado último, o dia da estréia, a frustração foi proporcional à expectativa. Não parecia ter existido diálogo entre as partes, não havia liga. Autor, ator e diretor cederam, fizeram concessões, principalmente os dois primeiros, mas não aconteceu o encontro, a unidade esperada.
A partir da direção, o que se viu foi, por assim dizer, um retorno de Gerald Thomas ao teatro anterior a "Flash and Crash". Nada do humor, do rir-de-si-mesmo que marcou o espetáculo, três anos atrás. O diretor, sobretudo depois do contato com Fernanda Torres nestes últimos anos, passou a valorizar crescentemente os comediantes populares, como Regina Casé. Ney Latorraca é da qualidade de Regina Casé, da linhagem de Dercy Gonçalves, mas foi talvez quem mais perdeu em "Don Juan".
Há poucas cenas em que seu histrionismo é libertado. Acontece quando ele forma dupla com o sarcasmo incontrolável de Fernanda Torres, na hilariante passagem de um teste ginecológico; ali, é levado pelo diálogo de Otavio Frias Filho. Acontece quando ele está com a também histriônica Milena Milena, em passagem mais próxima do pastelão; é levado então pela direção de Gerald Thomas. Mas não acontece no todo.
O protagonista de "Don Juan", no mais das vezes, estava perdido, acuado, sem domínio do que fazia.
Por outro lado, a grandiloquência no limite do maneirismo, que Gerald Thomas vinha deixando de lado em favor do humor e até de uma certa compaixão pelas suas personagens, reaparece agora em muito de "Don Juan".
Algumas frases de efeito cômico, as chamadas "one-liners", como "mulher que acredita em homem pede a Deus que a mate e ao diabo que a carregue", perdem a graça, seja por estarem sublinhadas em excesso, como verdades grandiloquentes, seja por não terem mais a preparação, a escada, devido aos muitos cortes. Por exemplo, na frase que saiu de "aceito tratamento cruel, degradante, mutilação, qualquer coisa menos psicanálise" para "aceito tudo, menos psicanálise".
Os cortes vão bem além do exemplo. Uma comparação entre o texto inicial e o que chegou ao palco indica que mais de um terço da peça ficou para trás. A maior parte dos cortes ocorreu no segundo ato, de trama originalmente desordenada, confusa, mas que não se viu melhorada com as mudanças.
O primeiro ato, fora uma abertura lenta e pouco feliz, está redondo, girando em torno da melhor e mais engraçada passagem do espetáculo, aquela do exame ginecológico, seguida de uma tentativa de assalto por dois "clowns"; um deles muito bem desenhado por Ludoval Campos, com uma mescla de ironia e estupidez, o outro desperdiçado por Marcos Azevedo.
Os problemas de "Don Juan" acumulam-se mesmo é no segundo ato. Os personagens se amontoam e a trama torna-se um tumulto. A opção do diretor foi pedir cortes e cair de cabeça no pastelão, abraçar o tumulto do texto. Mas, deixando de lado a cena de Ney Latorraca com Milena Milena e Vera Zimmermann, aliás, uma cena que ainda pode alcançar mais, em humor, há pouco de envolvente na encenação do segundo ato.
É aquele em que se dá o acontecimento mais chocante, a castração e a morte de don Juan, aquele em que o espetáculo diz a que veio, afinal, mas antes de chegar lá a narrativa já se perdeu, levando com ela uma "mise-en-scène" mais e mais dispersa. A apresentação de estréia terminou sem que o público sequer entendesse que havia terminado. A sensação já não era de frustração, mas de estupor, de aversão até.
Dois dias depois chega uma nota da assessoria de imprensa da montagem dizendo de "novos elementos cênicos", de grandes mudanças no espetáculo. "Além de ajustes técnicos e em relação à duração da peça, o diretor modificou o final." A nova estréia, por assim dizer, foi anteontem.

Não mudou tanto, "Don Juan". Ney Latorraca está mais à vontade, também Fernanda Torres, também Milena Milena e Ludoval Campos. A interpretação ganhou ritmo, o que é próprio da peça em cartaz; o que é próprio, também, de um diretor que costuma estrear com pouco tempo de ensaio, para ajustar depois.
As cenas que surgiram com impacto na estréia, do exame e do assalto e o pastelão, ganharam em tempo e em cuidado. Por outro lado, Luiz Damasceno segue longe de definir a função de seu personagem na peça e Edilson Botelho, que faz o duplo de don Juan, parece estar necessitado de um roteiro de ações, para dizer o menos, ou para não dizer de um personagem. Ludoval Campos, por sua vez, está desesperadamente necessitado de um escada; é o que falta para o seu ato funcionar.
A apresentação de anteontem evidenciou mais, quanto à música, por exemplo. A grandiloquência de "Don Juan" se deve em grande parte à falta de evolução na trilha sonora, que Gerald Thomas mantém como há dez anos. A prova maior é o silêncio, no pastelão de don Juan com suas mulheres; o diretor parece não ter o que jogar, ao fundo, o que prende um maior desenvolvimento da cena.
Quanto ao "Canto da Castração", que agora fecha a peça, o que falta, além de uma gravação apropriada, é uma voz, ponto. Ainda está distante do prometido "encerramento apoteótico". De todo modo, a sensação do público no encerramento deste segundo "Don Juan" já não era aquela de frustração ou de aversão. Com o tempo, quem sabe.

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