São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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Crianças morrem sem governo e sem comida

GILBERTO DIMENSTEIN
ENVIADO ESPECIAL A TEOTÔNIO VILELA (AL)

Localizado em Teotônio Vilela, a 105 Km de Maceió, no agreste de Alagoas, um superlotado cemitério chamado Menino Jesus de Praga é o cenário final de uma experiência promovida pelo Palácio do Planalto.
Corpos de bebês mortos, rodeados de moscas, são os personagens que indicam o fracasso da experiência. Em apenas dois dias —quarta e quinta-feira—, foram três enterros de vítimas da desnutrição. Os enterros seguiam um ritual: crianças carregando, impassíveis, o caixão pelas ruas empoeiradas da cidade.
"Deus trouxe, Deus leva", conformava-se, na quarta-feira, José dos Santos, 23 anos, desempregado. Seu filho Sebastião morreu de diarréia. Enquanto ele esperava o coveiro preparar a sepultura, as crianças que conduziriam o corpo brincavam de pega-pega entre os túmulos. O corpo baixou à sepultura sem reza ou choro. Meninos se divertiam tapando a cova.
Josivane da Silva Português não seguiu os costumes da terra. Postou-se, na última quinta-feira de manhã, ao lado do corpo de seu filho Lucas, vítima de anemia com pneumonia. Tinha um ar desconsolado. O pai —Severino Português— esforçava-se, sem muito êxito, em afastar as moscas.
Os dois não são de Teotônio Vilela, vieram de Major Isidoro, sertão de Alagoas, procurando vida melhor. Lá, a mortalidade não é tão alta. Severino estava mais conformado: "É a mão de Deus".
Os pequenos Sebastião e Lucas viraram mais um dado na estatística acompanhada pelo Palácio do Planalto. O azar de Sebastião foi não ter nascido meses antes.
Durante quatro meses, o cemitério exibiu abruptamente estatísticas de Primeiro Mundo. "Viramos um laboratório", comenta o secretário de Saúde Eugênio Leite.
Em julho do ano passado, Teotônio Vilela virou notícia devido a seus índices de mortalidade infantil, comparáveis com os países mais pobres da África.
Virou símbolo de um fenômeno detectado inicialmente pela Igreja Católica, através das redes da Pastoral da Criança e, depois, confirmado pelo Ministério da Saúde: a combinação da seca com crise econômica fez explodir os índices de mortalidade no interior do Nordeste.
Nos meses de abril e maio de 1994, das 138 crianças que nasceram em Teotônio Vilela, 88 morreram antes de completar um ano.
Subordinado ao Palácio do Planalto, o Conselho de Segurança Alimentar (Consea) resolveu, com o Ministério do Planejamento, usar a cidade como modelo de operação social na área de saúde.
Queria mostrar como se baixa com rapidez e pouco dinheiro a mortalidade infantil. Conseguiu. A partir de julho, começaram a chegar 9.000 cestas básicas por mês. O resultado foi imediato. Em agosto, das 85 crianças que nasceram, morreram apenas duas.
Se fossem separados os meses de agosto a novembro, a cidade teria o nível de mortalidade (15 mortes a cada 1.000 nascidos) próximo dos EUA (10 por 1.000).
Com seus 34 mil habitantes, Teotônio Vilela realizou num mês o que a maioria das nações desenvolvidas necessitou de um século. Mas, em dezembro, os números de óbitos voltaram a crescer.
Motivo: a suspensão da comida que vinha de Brasília —o número de mortes pulou para 13, o que dá uma projeção de 137 por 1.000. E a cidade, agora, saiu da proximidade com os Estados Unidos e ficou abaixo de Bangladesh (122 por 1.000), na Ásia, ou Camarões (113 por 1.000), na África.
Pilotando os números, a assessoria do Planalto enviou relatório a Anna Peliano, secretária-executiva do Programa Comunidade Solidária. "Estamos mostrando como a comida é o melhor remédio", diz Eugênio. Ele se acostumou a ver quedas nos índices de mortalidade no segundo semestre. Pelo simples motivo de que, nesse período, as usinas de cana contratam mais trabalhadores. O que se traduz em comida dentro de casa.
Apesar de todo o investimento do Palácio do Planalto, somando-se todos os meses de 1994, Teotônio Vilela encerrou o ano passado com uma mortalidade de 221 crianças por 1.000 nascidas. O que equivale à de Guiné.
No primeiro semestre, a taxa foi de estratosféricos 337 por 1.000. Ganharia de Níger, o pior no ranking mundial divulgado anualmente pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).

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