São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mitologia de um clássico

CARLOS HEITOR CONY
COLUNISTA DA FOLHA

Como todo carioca em disponibilidade, até aos oito anos eu torcia pelo América. O encontro com o meu destino foi num Fla-Flu dos anos 30, o primeiro jogo de verdade a que assisti.
Mais tarde, quando estudei e li os gregos, não foi a mesma coisa. Afinal, a luta entre deuses e heróis me pareceu um "remake". As brigas da mitologia eram mofinas diante do que eu havia visto no velho gramado das Laranjeiras. Por sinal, que estavam em campo um Hércules, ponta-esquerda do Fluminense, e um Leônidas, centroavante do Flamengo.
Ainda por cima, o Fluminense tinha um Romeu, que não era Montecchio como o herói shakespeareano, mas Pelliciari, que depois engordou e foi dono de uma cantina em São Paulo.
Paixão fulminante, não tive outra na vida assim brutal e profunda. O tricolor ganhou de 3 a 1, gols do citado Hércules, dois, e Tim. O gol do Flamengo foi de pênalti, roubado, quem bateu foi (pasmem!) Domingos, o da Guia. Não assisti à batalha das Termópilas, nem ao rapto das Sabinas, às lutas de Aquiles e Heitor, não vi sequer a Batalha de Itararé. Mas, em matéria de emoção e transcendência, não tenho do que me queixar. Vi o Fla-Flu —e basta.
Pois a peculiaridade do clássico, mesmo agora, é difícil de explicar. Ele é único, indiviso como a Santíssima Trindade. Por pior que estejam os times, por mais avacalhada que esteja a torcida, quando as duas legendas se encontram há uma chispa de eternidade em campo. Todos sabem que o Flamengo é uma dissidência do Fluminense, como o PSDB é uma dissidência do PMDB. Tiveram um ventre comum —o que mais ou menos aconteceu com os deuses gregos. Hoje, o Flamengo adentra o gramado com Romário, que sozinho é uma espécie de carro-chefe dos Fenianos, coberto de glória e de casos.
Modestamente, o Fluminense saberá se defender. Não temerá a nuvem de flechas que cobrirá a luz do sol. Combaterá à sombra —aliás, uma de suas especialidades. Mário Filho, que criou a mística do Fla-Flu, dizia que quando os dois times se encontravam, o que estava pior no campeonato e na vida saía sempre vencedor. Nelson Rodrigues, irmão de Mário, descobria nessas horas o Sobrenatural de Almeida. Uma entidade que enfrenta e anula qualquer Romário. Com a vantagem de só custar a fé.

Texto Anterior: Até morrer
Próximo Texto: Atacante se diz 'em forma'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.