São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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As imitações criativas

JOÃO ANGELO OLIVA NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Lírica e Lugar-Comum" (Edusp), de Francisco Achcar, vem suprir uma carência na bibliografia brasileira dos chamados estudos clássicos.
Estes estudos, particularmente, sobre poesia grega e romana, a partir do Romantismo, têm padecido de uma ótica que, privilegiando um tipo de originalidade e entronizando as relações entre a vida do poeta e a poesia por ele criada, não pôde ou não quis compreender a especificidade da poética antiga.
Em linhas gerais, a poética antiga, ao contrário da romântica, baseava-se na rigorosa atenção aos preceitos de cada "gênero" poético (épico, lírico, dramático e os sub-gêneros de cada um, como o satírico, elegíaco etc), fixados pela Retórica, e na apropriação, por parte dos poetas, dos lugares-comuns (os "tópoi koinói" ou "loci communes") já utilizados por seus antecessores.
Assim, o poema tinha substância na medida mesma em que atualizava as preceptísticas retóricas e as tópicas do gênero a que pertencia. O poeta era original na medida em que buscava na origem (isto é, no legado da tradição) as figuras e imagens que atualizava, e não por ter a pretensão de ser ele mesmo essa origem.
A atualização que cada poeta efetivava era ampla o suficiente para admitir um traço pessoal, circunstâncias históricas, adaptações, de modo que, nos melhores autores, a imitação, como procedimento alusivo e intertextual, não era servil, mas criativa, o que fazia estender dinamicamente os limites da própria tradição.
A partir dos anos 40, na Europa e nos EUA, os estudos de literatura antiga (e dos movimentos por ela influenciados) passaram a ser realizados com estrita observância destes elementos e de seus pressupostos retóricos, da natureza alusiva e da consequente intertextualidade da poética antiga.
O trabalho de Francisco Achcar, professor de letras clássicas na Universidade Estadual de Campinas, é pioneiro entre nós, tendo a poesia de Horácio como objeto e inscrevendo-se nessa linha de reflexão.
Em linguagem elevada (mas nunca pedante) e concisa (mas sem obscuridade), começa, já no "Prólogo", por examinar precisamente as dificuldades e o estranhamento que a arte alusiva dos antigos nos causa.
No capítulo "Gênero e Tópica", enfrenta o que nos parece um paradoxo: a relação entre lírica e lugar-comum. "Pós-modernos", mas ainda entupidos muita vez daquele tardo-romantismo, confundimos a subjetividade poética, como dimensão própria da lírica, com a sinceridade e com dados pessoais do poeta, que são apenas um particularismo, insubstancial para a poética antiga.
Em seguida, o autor discute, concentrando-se agora em Horácio, a questão do tempo, percebido respectivamente em dois aspectos: o da efemeridade e o da eternidade. A tópica da efermeridade, denominada com uma expressão horaciana, "Carpe Diem" ("desfruta o dia", da ode 1, 11), é o tempo da vida e diz respeito a uma certa urgência que o tempo impõe às experiências imediatas, em geral de cunho hedonístico, que estão ao alcance do sujeito lírico.
Em sentido contrário, porém complementar, a tópica da eternidade, também referida com expressão horaciana, "Exegi Monumentum" ("concluí um monumento", da ode 3, 30), é o tempo da poesia; diz respeito a sua perenidade e a consequente imortalidade do poeta.
Seguem-se um "Excurso" ("Metamorfoses de Pirra") e uma "Antologia" de traduções de Horácio em português ("Horácio e Várias Vozes"). No excurso, Francisco Achcar analisa formalmente a ode 1, 6 ("Ad Pirram") e revela, por meio leitura crítica das várias traduções deste poema ali estudadas, elementos constitutivos do texto original.
Assim, faz da tradução poética não um apêndice meramente ilustrativo do original, dispensável aos que lêem latim, mas a maneira mais precisa de todos —inclusive latinistas— perceberem a substância poética do texto latino.
Nesse sentido, o Excurso, sugerindo um modo de ler as traduções da Antologia, integra-se e se integra organicamente às outras partes do livro.
Essa integração confere à obra um interesse, por assim dizer, pedagógico e edificante, que é seu maior mérito: ajudar a propor, no âmbito da poesia brasileira atual, um tipo de leitura e de criação à antiga, sempre aberta à inovação, mas muito conhecedora dos precursores.

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