São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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Ávila faz uma leitura tropical da vertigem estética setecentista

JOSÉ MARIA CANÇADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Hoje, fala-se cada vez mais na "tropicalidade do barroco". Ele seria, escreveu o historiador italiano Riccardo Averini, "a primeira manifestação de arte, no mundo moderno, a ter uma universalidade extra-européia". Há mais, porém: hoje é quase obrigatório falar-se também na "tropicalidade da reflexão sobre o barroco".
Dessa reflexão faz parte, de modo praticamente inaugural, o trabalho de Affonso Ávila. E desse trabalho (nascido de uma crise pessoal, literária e política que lhe caiu sobre a cabeça com o golpe de 1964), a expressão mais importante é esse "O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco", publicado pela primeira vez em 1971.
Acrescida de outros textos, esta terceira edição vem organizada em dois livros. No primeiro —"Uma Linguagem a Dos Cortes, Uma Consciência a Dos Luces", título emprestado do espanhol Baltasar Gracián na sua formulação sobre a dicción equívoca na poesia conceptista— reúnem-se estudos mais tematicamente universais e de natureza mais teórica.
No segundo livro, Affonso Ávila, diferentemente de uma historiografia que quer ver no século 18 em Minas apenas algumas manifestações tardias do barroco europeu, nos coloca diante da evidência de uma plena "idade barroca mineira" em plena civilização mineradora e urbana setecentista. Uma convivência cuja fulgurância é sugerida no título do volume, "Áurea Idade da Áurea Terra", verso de um poeta da época, Antonio Dias Cordeiro, de Mariana.
São esplêndidos os estudos sobre o impulso e a vertigem lúdica que recobrem a formação cultural e estética do barroco. Escreve Affonso Ávila: "A subjetividade do homem barroco, rechaçada em seu projeto de exteriorização pelas forças coercitivas da historicidade, reflui sobre si mesma e, na tentativa de encontrar qualquer modo de plenitude ainda que na dimensão da interioridade, acelera a sua inteira disponibilidade de imaginação, liberando-se afinal em formas criativas impregnadas de jogo e de fantasia". Portentosa essa transformação, flagrada por Ávila, da "alma estremecida do Seiscentos" em sujeito de uma grande e vital vontade estética de jogo.
A mesma vital vontade de jogo que, no espaço supranacional do grande barroco, Affonso Ávila vê cruzando a obra de dois proto-escritores brasileiros: Antonio Vieira e Gregório de Matos.
Mas Affonso Ávila não os inclui sem mais e rotineiramente no livro. No Vieira do "Sermão da Sexagésima", ele vê não só o criador de uma nova teoria do sermão, mas também o criador de uma "linguagem que não quer esgotar-se na pragmática do sermão, mas que ao mesmo tempo busca resistir à mera vertigem do literário". Vieira seria o responsável por um lance altíssimo, por um "desafio a que poucos escritores da língua têm logrado responder".
Gregório de Matos, por sua vez, com sua "entonação equatorial", seria o criador de "uma saída brasileira". Uma saída constituída por uma linguagem de postura aberta, pela reação ao impacto tropical, a busca de uma fantasia autônoma, e por uma concepção contraditória do real e de dilaceramento da existência. Um programa tanto mais atual quanto, como o desafio de Vieira, não realizado.
A revisão crítica do barroco por Affonso Ávila tem também um pouco disso. Como a "nova teoria do sermão" de Vieira, ou a "saída brasileira" de Gregório de Matos, é igualmente um lance muito alto e ainda não coberto na cultura brasileira. É o que faz do pós-barroco de Ávila um programa quente.

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