São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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A aventura sem fim do barroco

JOSÉ MARIA CANÇADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O barroco é um milagre que não deu certo, um milagre que se frustra" deixou escapar Affonso Ávila no final da entrevista em sua casa em Belo Horizonte. Ele se referia às procissões vistas em Minas, parecidas à preparação de um milagre iminente que ao não se cumprir, se transforma em irresistível emoção estética.
Mas se referia também ao fato de justamente por ser essa visão do paraíso que nunca se realiza, o barroco continuar sendo uma espécie de paraíso à espreita. Para Affonso Ávila, como revelam os ensaios reunidos nesta terceira edição de "O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco", 250 anos depois de surgir no Brasil, o barroco, longe de ser peça de esfriamento da cultura, é uma arma quente.
A partir do início da década de 60, quando Affonso Ávila passa a se dedicar ao tema, ela pode ser sentida tanto no seu trabalho de pesquisador, com a publicação de "Resíduos Seiscentistas em Minas" (1967), como na sua obra de poeta, com "Código de Minas" (1969).
A relação entre a revisão crítica do passado, empreendida pelo ensaísta, e o ânimo de vanguarda do poeta não se desfaria mais ("ele mistura futurismo com necrofilia", diria à sua maneira Paulo Leminski, referindo-se ao "barroco-ficção científica" de Affonso Ávila).
Viriam em seguida os ensaios de "O Poeta e a Consciência Crítica" de 1969, e os livros de poesia "Código Nacional de Trânsito", de 1972, "Cantaria Barroca", de 1975, "Discurso de Difamação do Poeta", de 1976, "Masturbações", de 1980, O Visto e o Imaginado", de 1990.
Hoje, com 67 anos, Affonso Ávila cogita ver a sua obra poética completa publicada daqui a três anos. "Só aos 70", diz. Por enquanto, continua dedicando-se ainda e sempre ao barroco. "É a nossa janela tropical".

Folha - Desde algum tempo o barroco vem sendo, como o senhor diz no seu livro, "desvestido da sua ancianidade", o que deu a ele uma súbita atualidade e fez surgir uma crescente reflexão sobre temas e aspectos nunca cogitados antes. Como aconteceu isso?
Affonso Ávila - O estudo do barroco no Brasil até há algum tempo se limitava à área tectônica, na arquitetura, e à área plasticista, nas artes plásticas, da pintura, escultura, talha etc. Apesar da excelência dos pesquisadores, como Sylvio de Vasconcellos, Lourival Gomes Machado, e do próprio Rodrigo Mello Franco de Andrade, quase nunca se falava no barroco como síntese de mentalidade de um determinado período, uma espécie de primeira aldeia global sob a qual se uniu o Ocidente sob um mesmo signo de cultura.
Em 1959 um dos grupos que estavam na vanguarda da criação estética brasileira, e que tinha lançado o Manifesto da Música Nova Brasileira, o Julio Medaglia, o Gilberto Mendes, o Regis Duprat, o Willi Correia de Oliveira, o Rogério Duprat, esse grupo, de alunos do Koellreuter, que estava voltado para o estudo da música barroca, conheceu o Curt Lange, que tinha descoberto um veio extraordinário na música daquele período.
Ele mostrou que a música que se tocava naquelas igrejas era contemporânea da arquitetura, da escultura que havia ali. Não era possível que uma arte como a das igrejas de Minas, aquele ambiente de ensue¤o, tivesse acontecido à parte de outras expressões de cultura do tempo.
Foi nesta época que eu localizei alguns documentos, do século 18, que relatam e descrevem uma atmosfera inescapavelmente barroca, e que comprovam ter sido maior e mais caracterizada a atividade que se desenvolvia então.
Folha - Otto Maria Carpeaux dizia que, como estilo, o barroco era europeu, mas como survival era um fenômeno americano. O senhor concorda com isso? E o que vive e se move hoje sob o barroco da América Latina? O que é essa sua segunda vida entre nós?
Ávila - O Carpeaux estava antecipando o que hoje se manifesta na obra de alguns escritores latino-americanos, e tem sido chamado de neobarroco. Os cubanos por exemplo, como Lezama Lima, Alejo Carpentier, Cabrera Infante, mais recentemente o Severo Sarduy, uma série de outros, como o chileno José Donoso, Juan Carlos Onetti, e, embora os escritores brasileiros ainda não façam parte explicitamente desse mercado comum do neobarroco, Guimarães Rosa, que eu não consigo ler sem pensar na "Antífona a Nossa Senhora do Pilar", uma composição do século 18 mineiro.
Isso é a expressão do que o italiano Ricardo Averini chamou de "tropicalidade do barroco", um fenômeno próprio da sociedade latino-americana, e que reside no fato dessa sociedade não ter ser laicizado completamente, no sentido capitalista. Há uma espécie de nervura no metabolismo cultural latino-americano, formada pelo próprio barroco. Ele é o elemento constitutivo e primordial da nossa diferença. É como que a nossa janela tropical.
Folha - Darcy Ribeiro disse numa entrevista recente que nós somos o fruto de uma romanidade tardia no contexto da experiência contemporânea. O senhor concorda com isso? Em que medida o barroco traduz essa romanidade tardia?
Ávila - É verdade. Quando por exemplo os Inconfidentes vão discutir o lema da bandeira brasileira, alguns poetas do grupo propõem que o emblema seja um índio desatando e rompendo as cadeias que o aprisionariam e o ligariam à Europa.
Alvarenga Peixoto propõe, diferentemente, que o verso seja latino. Ele busca a confluência entre a tradição latina, de que o barroco era um produto, a resposta tropical, a saída tropical.
Naquele momento se estabelece um conflito, de que eles inclusive talvez nem tivessem consciência nítida, e que com certeza ultrapassava o próprio repertório cultural que era o deles. Mas é como se Alvarenga Peixoto estivesse dizendo —"sim, nós somos americanos, sim, nós somos tropicais, mas nós também somos ocidentais, nós somos uma nação moderna, de origem latina". O barroco está longe de ser um nativismo, estando cheio, ao contrário, de citações.
Folha - O seu livro mostra largamente que o barroco, mais do que um estilo confinado num determinado período histórico-cultural, é a aventura do "grande barroco". O que nos reserva hoje, na cultura e na vida brasileiras, essa aventura?
Ávila - O que o barroco nos reserva, sempre, o tempo todo, é o exercício dessa consciência dilemática que nós herdamos. Para o homem e o olhar barroco a terra, para lá do movimento de laicização geral de um certo capitalismo, continua em transe.

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