São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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Esboços e versões finais

PAULO CÉSAR DE SOUZA
DE MONTREAL, ESPECIAL PARA A FOLHA

A simples revelação de um "diário científico" de Freud já bastaria para caracterizar a publicação deste livro como um evento. Mas ele oferece ainda mais do que isso. As anotações eram o estágio inicial da produção. Grubrich-Simitis passa a descrever e analisar as duas fases seguintes: o rascunho ou versão provisória ( Entwurf) e a versão manuscrita final ( Reinschrift), anterios à composição tipográfica. O célebre "Projeto de uma Psicologia Científica", de 1894, é um exemplo de rascunho ou esboço ("Projeto" foi a tradução que os ingleses deram a Entwurf), que no entanto foi abandonado.
Visualmente, os rascunhos se diferenciam das versões maduras por grandes riscos transversais, que Freud fazia ao transcrever, elaborando e revisando, cada parágrafo. O livro apresenta facsímiles de ambos.
Normalmente esses esboços eram descartados após serem passados a limpo e expandidos, mas pelo menos cinco deles se conservaram. Eles são: o de uma conferência pronunciada diante da irmandade B'nai B'rith em 1915, sobre o tema "Nós e a Morte" (a versão final dessa palestra foi publicada pelo semanário Die Zeit em julho de 1990; escrevi sobre ela nesta Folha, alguns meses depois); o de um ensaio metapsicológico dando como perdido, sobre as neuroses de transferência (editado pela autora; ver acima); o do ensaio sobre o caso Schreber, "Uma Neurose Demoníaca do Século 17"; partes de Moisés e o Monoteísmo; e, por último e o mais importante, um esboço que é, substancialmente, outra versão de O Ego e o Id (ou O Eu e o Isso, de 1923).
Na mencionada resenha do International Journal of Psychoanalysis —que recomendo aos leitores interessados em mais informações sobre esse livro—, Mark Solms afirma que uma publicação desse rascunho, com um estudo comparativo dos dois textos, representará uma "major contribution" à pesquisa psicanalítica.
O cotejamento dos esboços, versões finais e textos impressos leva a autora a constatar diferenças ou variantes, que ela classifica em seis tipos:
a) variantes gráficas: exemplificadas por outros desenhos da organização psíquica, um tanto diversos daquele mostrado em O Ego e o Id, e por um desenho inédito do Moisés de Michelangelo;
b) variantes estilístico-retóricas, bem mais numerosas, demonstrando uma contínua preocupação de aclarar o sentido e realçar a beleza das frases;
c) variantes esclarecedoras, que podem se confundir com as anteriores, sendo porém mais explícitas e extensas, e afetando mais diretamente o conteúdo. Grubrich-Simitis dá exemplos significativos encontrados na história do Homem dos Lobos e Além do Princípio do Prazer, entre outros;
d) variantes de divisão, isto é, na organização e numeração dos capítulos das obras;
e) de títulos: O Futuro de uma Ilusão chamou-se originalmente O Futuro de Nossas Ilusões, antes de se decidir por O Mal-Estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur) Freud pensou em A Infelicidade na Civilização, Inibição, Sintomas e Angústia ia chamar-se apenas Inibição e Sintoma (a angústia veio depois), etc, etc;
f) emotivas: assim denominadas porque em geral se relacionam a pessoas, atenuando ou omitindo uma qualificação anterior. Por exemplo, no manuscrito final de Moisés e o Monoteísmo Freud se refere a Bernard Shaw como "um espirituoso diletante", algo que não se acha no texto impresso. Mas também incluem, na classificação da autora, as hesitações de Freud no tocante a obras e temas que lhe eram caros, e nesse caso têm implicações de Freud no tocante a obras e temas que lhe eram caros, e nesse caso têm implicações bem mais que anedóticas.
Assim, em Totem e Tabu, onde se lê, na versão impressa, "aquela grande tragédia pré-histórica" (isto é, o assassínio do pai primordial), ainda se encontrava, no manuscrito final, "aquela grande tragédia mitológica". Neste ponto a autora lembra, pertinentemente, a crítica de Lévi-Strauss a Totem e Tabu...
Uma categoria à parte, merecedora de todo um capítulo, constituem dois manuscritos que não podem ser designados nem como esboços, nem como versões finais, e que nossa autora se inclina a considerar "primeiras versões", parcialmente rejeitadas pelo autor.
Compreensivelmente, são de duas das mais especulativas e mais debatidas obras de Freud: Além do Princípio do Prazer e Moisés e o Monoteísmo. Na verdade, há dois manuscritos de cada uma delas (parciais, no caso da segunda). A comparação criteriosa entre eles e as versões impressas, à luz de um conhecimento sólido das circunstâncias em que foram produzidos, permite a Grubrich-Simitis acrescentar coisas novas à discussão desses livros.
O capítulo seguinte é dedicado às publicações póstumas, e nele as novidades continuam aparecendo. É demonstrado que os trabalhos reunidos no volume 17 da mais completa edição alemã (Gesammelte Werke) sofreram alterações por parte dos editores.
"Psicanálise e Telepatia", por exemplo era um texto sem título, uma comunicação restrita, bastante provisória e não destinada à publicação. Os editores suprimiram vários trechos e a publicaram como um trabalho definitivo. Mais relevante, o Compêndio de Psicanálise, último escrito de Freud, seria um rascunho completo, e não uma versão final incompleta, como se pensava até agora. Grubrich-Simitis prova que ele foi editado de maneira excessivamente livre, contendo inúmeros erros de transcrição.
Finalizando a segunda parte, um breve capítulo informa sobre alguns textos escritos para publicação, mas que por algum motivo permaneceram inéditos: uma bibliografia própria, redigida em 1924, um pós-escrito e notas extensas à "Questão da Análise Leiga", etc.
Zurck zu Freuds Texten é um livro de erudição, mas também de combate. Exortando a que se retorne aos próprios textos de Freud, na materialidade de seus manuscritos, Grubrich-Simitis se opõe à tendência historicizante de boa parte da produção psicanalítica de hoje, por um lado, e às interpretações que utilizam esses textos para sutilmente subvertê-lo, por outro lado.
Tomando o "partido do texto", ela repudia os que se ocupam da pessoa e dos pequenos fatos, para esquecer a obra, e os que pretendem se apoderar da obra, determinando ser isto ou aquilo o que Freud queria dizer —desconsiderando a "cautela empírica, a disciplinada prudência na formação das hipóteses", que esses manuscritos revelam com frequência.
Seria preciso dizer algo sobre a terceira parte do livro, que propõe coordenadas para uma futura edição crítica, e que me parece tão interessante e bem argumentada quanto as duas primeiras. Também é preciso relatar o que se faz atualmente em matéria de pesquisa e edição de outras partes do "corpus" freudiano: a correspondência com amigos, familiares e discípulos, da qual estão saindo vários volumes, os muitos trabalhos neurológicos, que finalmente serão publicados, a transcrição em computador que está sendo feita na Alemanha, etc. Tenho conversado sobre essas coisas com Patrick Mahony, psicanalista e professor de literatura na Universidade de Montréal, autor de vários livros sobre a linguagem de Freud. Elas ficarão para uma outro artigo.

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