São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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A luta pela cidadania

MARIA VICTORIA BENEVIDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A espoliação urbana em São Paulo, sob suas múltiplas formas, e sua contrapartida na dinâmica da participação popular, é o tema geral da coletânea As Lutas Sociais e a Cidade. A motivação para as pesquisas que lhe deram origem expressa um esforço de compreensão de uma realidade cruel, vista pelo olhar competente e solidário de intelectuais comprometidos com as lutas de seu tempo.
O diagnóstico é preciso sobre a tragédia urbana na "locomotiva do Brasil" (estatísticas, tabelas e fotos); complementa-o a análise sobre "o outro lado" —o da conscientização, da mobilização e da organização popular. Revela-se a cidade da indústria e da miséria, mas também a cidade da resistência. É a reconstituição da história da cidade como o espaço social de lutas.
Não por acaso, o livro se inicia com as lutas sociais no começo do século e termina com o PT na prefeitura. Percebe-se, nos diferentes textos, uma tentativa de discutir as modificações ocorridas nos movimentos populares, bem como a evolução de um certo setor da esquerda em relação à noção de democracia e de cidadania. O papel dos sindicatos, da Igreja e do PT são analisados nesse contexto.
Lúcio Kowarick e Milton Campanário escrevem sobre São Paulo como a "metrópole do subdesenvolvimento industrializado", enfocando os efeitos da crise econômica, da urbanização predatória, de um Estado corrupto e inoperante, da agudização das contradições sociais e do capitalismo transnacionalizado. A "cidade de fronteiras abertas" é também a cidade da segregação espacial e das "classes perigosas".
Os arquitetos Clara Ant, Nabil Bonduki e Raquel Rolnik situam os problemas da moradia desde os primeiros cortiços (cem anos de promiscuidade) até os movimentos dos sem-terra e dos sem-teto, passando pelos loteamentos clandestinos, o "refavelamento" e os mutirões. Explicam a consolidação de um "padrão periférico de crescimento urbano" e destacam a "politização" da questão a partir dos anos 70, com o imbricamento da luta específica e demais reivindicações dos trabalhadores. Desta politização, um bom exemplo lembrado é a campanha para o encaminhamento de um projeto de lei por iniciativa popular visando à criação de um Fundo Nacional de Moradia, infelizmente engavetado até hoje no Câmara dos Deputados.
Os sociólogos Laís Abramo, Sílvio Caccia-Bava e Vera da Silva Telles apresentam conclusões de suas pesquisas sobre o mundo do trabalho e os movimentos sociais. Laís escreve sobre as greves de metalúrgicos em São Bernardo; tem um texto original e mesmo comovente, sobre a dignidade do trabalho, sobre o sentimento de injustiça e humilhação que leva à luta.
Sílvio retoma o tema, enfatizando a questão sindical e suas relações com as lutas nos bairros e o surgimento de uma prática classista, com a emergência de um novo sujeito político: as classes trabalhadoras. Vera faz uma análise rigorosa dos movimentos, enfatizando as dificuldades para a construção de um espaço político que seja efetivamente público, cada vez menos marcado pela tradição do populismo, do clientelismo e do corporativismo.
O capítulo final, inédito nesta reedição, discute "o modo petista de governar" na gestão de Luisa Erundina. Kowarick e André Singer conhecem bem o tema, do lado da administração e do lado do PT. Analisam as crises do governo com o diretório municipal, mostrando a evolução não apenas da prefeita, antiga ativista dos movimentos —quer "governar para a maioria, e não para o partido"—, como também dos próprios militantes.
Analisam as experiências do governo participativo e o duro, porém positivo, aprendizado da negociação. Mostram as dificuldades de quem define prioridades para as áreas sociais —com especial êxito em educação e saúde—, mas é cobrada também pela existência de mendigos nas ruas e "buracos nos Jardins". Mostram, acima de tudo, como a gestão petista tomou por princípios aquelas virtudes democráticas e republicanas que configuram, na prática, a ética na política.
Enfim, neste recente aniversário da cidade, uma metáfora pós-moderna ilustra o nível das carências de nosso povo: o imenso bolo de 441 metros, na tradicional festa do Bixiga, levou exatos oito segundos para ser destroçado pelos "populares", até então contidos energicamente pela polícia.

MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES é socióloga, professora da Faculdade de Educação da USP e diretora da Escola de Governo

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