São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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Centro, o álibi da direita

ROMELIO AQUINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A eleição presidencial levanta problemas. FHC venceu com folga inesperada e o PSDB sai das urnas com avanço antes inconcebível. Mas o mapa eleitoral do país revela um recrudescimento da fragmentação partidária. Parlamentaristas, como se sairão presidente eleito e partido no contraste de vontade plebiscitária "realmente" aglutinada e dispersão do poder na esfera da representação?
Com ou sem "Consenso de Washington", eles respondem: articulando maioria parlamentar para a qual a posição de centro é artefato de sabida eficácia. Assim, a mais combalida das grandes instituições da República, o parlamento, sediará como nunca a política nacional. E o mais escorregadio dos espaços políticos banca um projeto de poder de longo prazo: assistimos à fundação do centro no Brasil. É o caso de rastrear parlamento e centro em suas interrelações, a partir de questão que os assedia.

Esquizofrenia
Operação Mãos Limpas, primeiro-ministro na prisão, CPI do Orçamento —Itália, Japão, Brasil. Do Primeiro ao Terceiro Mundos escândalos abalam o Parlamento, minado pelo câncer da corrupção. Mas nem tudo é vergonha para o Parlamento: a mesma grande imprensa que alardeia seus males chega a imaginá-lo o duplo da democracia.
Ora é o Parlamento como mola-mestra de uma democracia tornada mecanismo, sob os auspícios de um Kelsen ou um Schumpeter; ora é uma espécie de "latin approach" que, do fechamento de congressos por golpes militares, deduz falaciosamente o Parlamento como signo indelével da democracia. (Daí à chantagem é um passo: vale todo preço um Congresso aberto.)
Como deslindar essa justaposição esquizofrênica de abominação e enaltecimento? Constitui o parlamento insubstituível ferramenta para o bem comum, só que manejada por mãos indignas ou inábeis? Ou trata-se de estratégico organismo vocacionado a tolerar, quando não favorecer práticas nada condizentes com a "res publica"? Argumentarei a segunda hipótese, com base em duas teses: o Parlamento instrumenta a corrupção; o Parlamento tende ao centro, isto é, à despolitização e suas consequências.
A realidade e o significado da instituição Parlamento que nos interessam têm origem na virada do século 18 para o 19, quando invade a arena política uma instauração parlamentarista conforme o modelo inglês. Por outro lado, nenhum debate é tão esclarecedor quanto o que se travou na crise da República de Weimar: na essência, uma crise do parlamentarismo. E ninguém investigou como Carl Schmitt, em obra cuja proporcional ressonância se restabelece. Ele relê Burke, Bentham, Guizot e J. Stuart Mill: "A fé no parlamentarismo é própria das idéias do liberalismo". E repõe a questão nos seus fundamentos —os princípios do parlamentarismo: discussão e publicidade (caráter público).
Os liberais coincidem na clássica definição do parlamentarismo como "government by discussion/gouvernment de discussion". Para eles, no Parlamento enfrentam-se opiniões —e não interesses— que visam convencer o adversário, com argumentos racionais, do verdadeiro e o certo ou deixar-se convencer pelo verdadeiro e o certo", expõe Schmitt. O que supõe convicções comuns: "A disposição a deixar-se convencer, a independência em relação aos vínculos partidários, a imparcialidade ante interesses egoístas".
Em suma, "o essencial no Parlamento é o intercâmbio público de argumento e contra-argumento, os debates públicos e a discussão pública, o fato de parlamentar". Discussão e não negociação, esta objetivando "não o racionalmente verdadeiro mas o cálculo de interesses e as oportunidades de levar vantagem, fazendo valer os próprios interesses segundo as possibilidades".
O parlamentarismo emerge na constituição do que Habermas chamou "esfera pública burguesa". Dá curso à luta iniciada pelos autores monarcômacos contra um dos pilares do absolutismo —a fundação por Maquiavel da razão de Estado, "em que estado e política não passam de técnicas para manter e ampliar o poder", ainda Schmitt. Daí a concepção do Parlamento como espaço público por excelência, no combate aos segredos de Estado: "a política de gabinete, feita por uns poucos a portas fechadas, aparece agora como algo intrinsecamente mau; a publicidade da vida política, algo bom e justo, pelo simples fato de ser público".

Novo organismo
Tais crenças já semelham "sátira" para o Schmitt atolado em Weimar; semelhará impropério para nós outros, contemporâneos de grave crise política e maior crise moral do Parlamento. Isso, na exata medida do descompasso, para não dizer contradição da metafísica liberal (ainda que ilusoriamente) instituinte com o estado de coisas da instituição parlamentar. Quais as razões dessa contradição ou descompasso?
O sufrágio universal levou ao surgimento de uma moderna democracia de massas, provocando um trincamento na dominação até então monolítica das "classes de posse e cultura" recrutadas pelo Parlamento burguês originário. A forma da organização política das massas é o chamado "partido democrático de massas", com métodos e técnicas revolucionários de conquista da opinião pública. O impacto desse novo organismo no sistema político como um todo é decisivo —uma das definições em teoria política para a forma estatal é a de "estado de partidos".
O partido de massas inviabiliza a discussão pública fundada no argumento em sentido estrito. Sua lógica (já internamente oligárquica: Michels) é, quanto às massas que lhe dão nome, a da manipulação sofisticada das mesmas, com destaque para os multigalácticos recursos da mídia, nada tendo a ver com alegados projetos de educação do povo (vide a "pujança" dos "institutos de pensamento" partidários); e quanto à disputa interpartidária, o jogo de conveniências que baliza a negociação de acordos, alianças, coalizões, à margem das convicções propaladas (vide a sorte dos programas partidários).
Tudo isso em aberta contraposição àquela ida-e-vinda da opinião na formação da vontade, aquele entrechoque de argumentos-a-descoberto em que consiste a substância da discussão pública. Do que agora se cuida não é de convencer do certo e verdadeiro o adversário, mas de obter maioria para governar.
Devastador é o efeito do partido de massas sobre a publicidade do Parlamento, com uma degradação em cadeia na deliberação parlamentar. Do plenário —intransferivelmente constitutivo da publicidade do Parlamento— para as comissões, destas (a regressão não é necessariamente linear) para a liderança de bancada, desta para o comando do partido e deste catalisador privilegiado para a gerência lobista do grande capital.
A questão não é o hoje imprescindível recurso a comissões nem a configuração da liderança no âmbito parlamentar; a questão é, por exemplo, o nexo decisão de comissão—voto de liderança, tecnicalidade tramada menos para agilizar decisões do que para camuflar o absenteísmo imoral e que realimenta, pela supressão da discussão pública, o segredo no Parlamento.
A questão não é a orgânica retroação pública ao partido; a questão é, por extrapolação do caso típico de "mal menor" que é a fidelidade partidária, o "fechamento de questão" pelo partido em reuniões secretas de seus dirigentes. E a questão não é ouvir publicamente a representação patronal em tópicos como emprego ou inflação; a questão é o pilhado comitê ultra-secreto das empreiteiras que, nas insuspeitas palavras do ministro conservador, "fazem o orçamento da União".
Max Weber diagnosticara um "demônio" da corrupção no partido clientelar-eleitoral norte-americano, que "trazia aparelhada a corrupção". Tal princípio corruptor se desdobrava no "spoils system", butim sendo os cargos federais distribuídos pelo partido com "funcionários do séquito do candidato vencedor". E o "boss": "empresário político padrão capitalista", arrecada desde as contribuições dos filiados às grandes somas dos magnatas das finanças, tributando o salário de "afilhados", além da venda de cargos e a prática de suborno e propinas.
O teórico da burocracia como "destino" e da política como "luta e paixão" oscila entre o desprezo e o fascínio pela "máquina" ianque, "empresa de partido acentuadamente capitalista" e capaz de produzir o "novo", inclusive "conduzindo nos Estados Unidos à presidência homens competentes que nunca ascenderiam a tanto na Alemanha".
Weber prognostica o desaparecimento do "sistema de despojos" e a alteração da forma da direção dos partidos, sistema e forma que não subsistiriam "sem danos enormes —corrupção e desperdício sem precedentes— que só um país com possibilidades econômicas ilimitadas contudo podia permitir-se". E remete para o parlamento a equação do desenvolvimento político: a seleção de dirigentes.
Mas o Weber que agora nos importa é menos o da manifestação e mais o de uma certa latência —para ele— da corrupção. De referência ao tema explosivo do corporativismo, Weber, provisoriamente:
"O parlamento se tornaria um mercado de compromissos de interesses puramente materiais, sem orientação político-estatal alguma... Os processos e compromissos decisivos dos interessados teriam lugar agora, muito menos controlados, atrás das portas fechadas de seus grupamentos não oficiais. Não seria pois o dirigente político mas o homem de negócios quem obteria diretamente vantagem do parlamento, enquanto para a solução das questões políticas desde pontos de vista políticos, a chamada 'representação popular'

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