São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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Centro, o álibi da direita

ROMELIO AQUINO

O que ocorre é a insidiosa mudança da representação em contrato

seria em verdade o lugar menos apropriado... Semelhante remédio não o é de modo algum para reduzir a influência capitalista sobre o Parlamento e os partidos."
Para Schmitt, os liberais conceberam uma "economia apolítica e um Estado sem economia" —era o "dualismo fundamental" de Estado e sociedade. O Estado, neutralizado e reduzido ao mínimo. A sociedade, fortalecida por sua projeção num legislativo em franca sobreposição aos demais poderes: o Parlamento era o teatro de operações da dominação burguesa e centro de gravidade da decisão político-estatal. Ao partido restava um papel coadjuvante, não perfazendo uma formação consistente, organizada.

Mão dupla
Diverso é o cenário ante Schmitt, que interpreta a passagem do Estado liberal abstencionista para o Estado social intervencionista. O desaparecimento da distinção entre Estado e sociedade dá-se como via de mão dupla onde, numa, transita a crescente "difusão" do Estado na sociedade. Noutra, a auto-organização da sociedade em Estado: "Estado e sociedade devem ser fundamentalmente idênticos: com isso todos os problemas sociais e econômicos transformam-se em problemas políticos e já não cabe distinguir entre zonas concretas político-estatais e apolítico-sociais".
O que implica o deslocamento do centro de gravidade da decisão, do Parlamento para a administração e sobretudo para os partidos, sindicatos e grupos de interesse. Aqui assoma o "pluralismo", "uma variedade de complexos sociais de poder firmemente organizados, que se estendem ao âmbito inteiro do Estado... apoderando-se de seus organismos representativos e sem cessar por isso de ser estruturas meramente sociais (isto é, não políticas)".
Tais grupamentos transpõem-se no parlamento sob forma de frações portadoras de uma "plurality of loyalties" para com a organização social frente ao Estado, redirecionando-o (o Parlamento) segundo seus interesses. Donde a formação da vontade estatal com apoio em maiorias parlamentares instáveis: "o estado de partidos democrático-parlamentar é um estado de partidos em coalizão instável".
Sabem-se as sequelas dessa engrenagem emperrada, a provocar "um governo incapaz de decidir, um desgoverno". Então, arremata Schmitt implacavelmente, "resulta absolutamente inevitável que a substância política se traslade a quaisquer outros pontos do sistema social e político. Outros poderes, legais ou apócrifos, assumem... o papel do Estado e governam, por assim dizer, por baixo do pano".
É a estamental refeudalização do poder político acabando por converter agora o próprio Estado em "despojo" —e a política no "negócio em geral desprezado de uma em geral desprezada classe".

Milhões de dólares
Weimar/Washington ou Brasília? "Spoils system"; "bosses", suborno e propinas; arrecadação privada e ilegal de fundos; venda de cargos públicos? Yes, nós temos "loteamento" de cargos, pecês, paubrasis & cia.; não apenas milhões de (iguais) dólares clandestinamente investidos, mas "assalariamento" de parlamentares por serviços prestados; e compra-e-venda de mandatos e legendas.
A sujeição "pluralista" do Parlamento aos interesses privados e/ou particulares de partidos, sindicatos e grupos de interesse se evidencia na dispersão-superposição caleidoscópica da identidade parlamentar: "bancada ruralista", "bancada evangélica", minibancada "verde", megabancadas (ecumênico-oportunistas) dos humilhados e ofendidos aposentados, funcionários públicos etc, interseção das bancadas de esquerda (e simbiose de algumas frações) com o respectivo meio sindical, alinhamento das bancadas de direita e comprometimento das de centro com o que há de mais particular no interesse privado.
"Governo incapaz de decidir, ingoverno" é como se avaliam as administrações pós-diretas-já. As práticas rapaces de grupos com o comitê "orçamentário" das empreiteiras, a "máfia" das licitações, lobbies de donos de escolas e hospitais privados etc supõem o Estado como "despojo", chegando a substituí-lo no estabelecimento de magnitudes e escolhas de responsabilidade estatal. E, por fim, política e políticos como atividade e classe desacreditadas é "topos" onipresente em pesquisas nacionais de opinião, correlacionando-se com a restauração do prestígio político dos militares.
Concluamos o diálogo com a sociologia e a ontologia social da corrupção parlamentar. Weber falha indiretamente, logo se verá, quanto à alteração da forma da direção do partido modelo norte-americano: a tese geral da racionalização também do partido político aponta para uma involução do partido clientelar-eleitoral enquanto tal.
Schmitt indiferencia a substância partidária, deslocando a ênfase para a primordial associação do interesse e potencializando a crítica antiparlamentar dos anos 60-70 europeus. Mais: essa indiferenciação antecipa a elaboração do seu aluno Kirchheimer, jovem politólogo da esquerda em Weimar famoso no pós-guerra com seus teoremas da "homogeneização" dos sistemas políticos, do desaparecimento da oposição e do desaparecimento do partido de massas clássico e a substituição por um novo padrão ocidental de partido, que ele intitula "catch-all party". Forjado no "jogo do mercado político", o partido "pega-tudo" troca eleitorado por clientela virtualmente ilimitada, reforçando os traços propiciadores da corrupção flagrados por Weber no partido norte-americano.
Schmitt esquadrinha um corporativismo-em-curso não circunscrito à ascensão do "fascio" mussoliniano. Weber atém-se à hipótese corporativista da Alemanha pré-weimariana. Em Weber confina-se o que para Schmitt assume dimensões epocais: "pluralismo" (desde o Estado) ou "corporativismo" (desde a sociedade), o que desponta é a inexorável privatização/particularização do interesse a ponto de inviabilizar sua posição comum —processo que tem no Parlamento como "representação popular" o dispositivo político-estatal de instrumentação.
O radical Schmitt delineia a potência da corrupção num organismo esvaziado pela ausência do "fundamento intelectual" (aqueles princípios) —conclamando à reflexão sobre a pertinência de uma desonrosa sobrevida do Parlamento. No ocaso do Império, o monarquista Weber tacha de "corruptos" os parlamentos estaduais norte-americanos, reconhecendo mazelas até num paradigmático Parlamento inglês, onde em regra os parlamentares "não passam de gado votante bem amestrado"... e aposta no Parlamento como núcleo do reordenamento institucional da Alemanha.
No quadro da derrota e da revolução, porém, o Weber já republicano percorre 180 graus e em artigo defendendo a eleição direta do presidente do Reich, faz arrasadora (auto)crítica da parlamentarização: "corporações de todo tipo" degradarão o Parlamento num "órgão corporativo... formado por homens mesquinhos e medíocres, incapaz de funcionar em qualquer sentido como centro de seleção dos dirigentes políticos".
Ora, Weber argumentara radicalmente contra uma "hipótese" corporativista que acontece —mudando retrospectivamente a argumentação em prognóstico e conferindo uma incômoda atualidade à sua tese. Por isso, "da capo", leitor: àquela simuladamente provisória e agora definitiva representação weberiana do Parlamento sob o influxo corporativista. Da formulação luminosamente concisa do Parlamento como "mercado de compromissos de interesses puramente materiais, sem orientação político-estatal alguma", à "representação popular" como inabilitada para a solução política das questões políticas; do segredo nos processos e compromissos à intangibilidade do poder capitalista sobre Parlamento e partidos. Compartilhável hoje no limiar do senso comum, a tese de Weber soa como réquiem da probidade ("objetiva", não "subjetiva") e põe em xeque a existência do Parlamento como ele é.
Mais de meio século depois (1980), Offe detecta a consolidação corporativista de problemas políticos inadministráveis no espectro das "formas políticas 'oficiais' ", exigindo discussão por "grêmios de negociadores". E são "inevitáveis formas extra-parlamentares de representação, decisão e resolução de conflitos. Um livro de ciência política com o subtítulo de: 'The Policy Process in a Post-Parlamentary Democracy'... teria sido recebido dez anos atrás como uma pilhéria de mau gosto, enquanto hoje, após a experiência e a teorização da 'ingovernabilidade', a tese por ele sustentada torna-se bastante convincente".

Negócios privados
A nova querela de "antigos" e "modernos", o embate privatização da economia versus desprivatização do Estado incide, a meu ver, num desvio de perspectiva: cavalgando um tardo-liberalismo ou à sombra do "Manifesto Comunista", dissimuladamente num caso e por redução da tese penetrante no outro, gravita na órbita da relação poder executivo —grande capital. "Esquecem-se" ou esquecem-se de que o operador estratégico da dominação burguesa, desde seu surgimento e em todos os tempos, foi e é o legislativo, como se sabe.
Na demonstrada supressão da discussão pública e conversão da publicidade em segredo, com a degeneração do Parlamento debatedor público em articulador de negócios privados, reside a "ultima ratio" de uma estrutural privatização do Estado. O que aí se passa é a insidiosa transformação da representação em contrato, na auto-dissolução do elemento público.
Transformação essa que, dada a incomutabilidade entre público e privado, potencializa a corrupção (com função genético-determinante para o item custo/financiamento de campanhas). Dá-se, pois, uma constante de corrupção no Parla-

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