São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 1995
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Centro, o álibi da direita

ROMELIO AQUINO

A direita acha no centro o álibi para sua envergonhada identidade

mento enquanto tal —variável é seu alcance, eventual seu desvendamento. Quando é ele próprio o sujeito desse desvendamento (e daí a ambiguidade de uma CPI do Orçamento), o Parlamento, parafraseando Bernstein, "ousa parecer o que (estruturalmente) é".

Freios e contrapesos
Desde o século 16 adentra os saberes a imagem da balança em equilíbrio, "a mais importante nos tempos modernos", na política (Schmitt). Salta à vista a "divisão de poderes", em que freios e contrapesos visam não a mera separação entre os três poderes, mas a montagem de "balance of powers" onde o equilíbrio se impõe ante uma natural —dado o império da lei— preponderância do corpo legislativo, o Parlamento. Aí se alicerça o patamar de um determinado equilíbrio no Parlamento: a relação Estado burguês de direito —forma política.
Os princípios do estado de direito —direitos fundamentais e divisão de poderes— independem da forma de governo: monarquia ou democracia, relativizam-nas enquanto constitucionais, afastando pretensões de Estado "absoluto". Reversamente, a não implicação da forma de governo pelo Estado de direito abre espaço para o "governo misto".
Na antiguidade e o medievo, o "ponto intermédio", o "status mixtus" prevalece —e a teoria da forma pura se confundirá historicamente com a teoria do absolutismo. Contra esta, a teoria do estado de direito começa na recuperação pelos monarcômanos da doutrina da forma mista e culmina na construção inglesa do equilíbrio de poderes. Só que essa construção se soma àquelas do governo misto: Bolingbroke vê na constituição inglesa a "mistura" perfeita do elemento monárquico (o rei) com o aristocrático (a câmara "alta") e o democrático (a câmara "baixa"), num "mixed ("and tempered": Burke) government".
Que papel toca ao Parlamento nessa mistura? O de um equilíbrio de segundo grau, com a pendulação de formas (políticas) sobreposta ao equilíbrio de poderes (constitucionais). Schmitt mostra a "situação intermédia" da burguesia liberal (entre monarquia e democracia radical) refletindo-se no ideal da moderação política e de um "juste-milieu".
Lugar daquela discussão racional e pública, o Parlamento é esse "meio-termo entre o Povo: os métodos de uma democracia direta e o governo: poder do Estado apoiado em milícia e burocracia". E o parlamentarismo tempera construções monárquicas (faculdade governativa de dissolução, por exemplo), aristocráticas/oligárquicas (bicameralismo inglês/sistema de gabinete) e democráticas (eleições diretas), "a serviço de um delicado equilíbrio" escorado na "modération" —desde Montesquieu, lembremos, o princípio da aristocracia. E da oligarquia, como subespécie.
Balança/pêndulo/equilíbrio, ponto intermédio, forma mista e temperada, "modération", "juste-milieu"... —centro. Ardilosa transposição política da trégua eterna da "moderação" como princípio no espaço não mais ético-aristotélico, mas tático-liberal de um meio-termo. Disse "o Parlamento tende", melhor talvez diria pende para o centro. Que significa e quais as consequências dessa tendência ou pendor?

Cozinhando reformas
"É a vez do centro". Para Giannotti, (1) só o centro possui "capacidade de mobilizar politicamente para fazer aquela aliança necessária que assegure governabilidade e promova a reforma do Estado de que carecemos"; (2) "neste centro é que uma candidatura Fernando Henrique, mais do que qualquer outra, pode encarnar (uma) ideologia de racionalidade e da, (3) transição sem grandes custos para todas as partes" —isso tudo com vistas à, (4) "modernização e fortalecimento do sistema político como um todo" (Folha, 13/3 e 10/4/94).
Quanto a (1): para o centro e em princípio, a "capacidade de mobilizar" para alianças é mero tropismo político. No multipartidarismo o centro se constitui nas e pelas alianças, dada a alternativa assinalada por Duverger de centro-direita e centro-esquerda coalizarem-se com os radicais correligionários ou os moderados da outra tendência.
Revendo o "centrismo" na democracia francesa, Duverger detém-se nos "venenos que desenvolveu e que enfraqueceram essa democracia". Primeiro a destruição das fronteiras interpartidárias, ao embaçar o divisor moderados —radicais dentro da direita e da esquerda e a separação entre centro-esquerda. Donde a a dissolução da distinção mesma de esquerda e direita, de pé na teoria mas nula na prática; reprime seu reformismo para permitir acordos com o centro-direita, sendo alto o custo da mudança e "mais fácil gerir a ordem existente que modificá-la, quando se está no poder".
Daí uma tendencial hegemonia do centro-direita sobre o centro-esquerda na maioria centrista. É que inversamente à bipartidária coexistência de moderados e radicais dentro de cada tendência, quando em governos do centro-esquerda os segundos espicaçam os primeiros para que não "cozinhem" as reformas, na multipartidária conjunção dos centros nenhuma pressão é exercida sobre o centro-esquerda —ao contrário, o centro-direita atua como um dique para a mudança: "sua ação soma-se à inércia das coisas... (e) tudo concorre para afundar o governo dos centros no imobilismo".
Sublinhando o conjunto Weimar-Quarta República francesa-Chile-Itália, Sartori analisa o posicionamento e não ideários de centro. Ele também diagnostica o "imobilismo" centrista e passa, traduzo, da dimensão reformas à dimensão governabilidade da tese de Giannotti. Para Sartori, a "ocupação física do centro" põe fora de competição a área central do sistema político: partidos de centro são imanentemente desestimuladores dos "impulsos centrípetos", os quais, por movimentarem-se em direção contrária àquela (centrífuga) dos extremos políticos, "são precisamente os moderadores". Resulta um componente instabilizador: oriundo do medo ao extremismo típico da situação polarizada, o centro é ao mesmo tempo motor da polarização.
Quem diz "reformas" quer dizer eficiência, quem diz "governabilidade" diz estabilidade. Ineficiência e instabilidade caracterizam o centro político.
Quanto à tese (2) de Giannotti, não admira a imprecisão com que associa uma igualmente imprecisa "racionalidade" a centro: conhecem-se os riscos de medir aquela, tanto mais na política e quanto mais por exclusão. Recorro ao patrono do tema, por extensão: "pode ser tão conforme ao dever do político militante conciliar duas opiniões opostas, quanto tomar partido por uma ou outra. Contudo... o 'juste-milieu' não é nem de longe uma verdade mais científica que os ideais mais extremos dos partidos de direita ou de esquerda" (Weber). E passo à sugestiva e despercebida tese (3) de Giannotti.
Batalhador de aliança "partindo da esquerda", ele pensa o centro como transição. Vale dizer, o suposto "centro" PSDB-PFL carregaria o telos da "devolução" do poder a uma aliança ideal esquerda-centro. Giannotti volta a bater de frente com a experiência e a teoria do centro.
Eterno atoleiro é como Duverger chama o centrismo francês: em 170 anos a França deixou-se governar 140 deles pelo centro. Da vitória da Democracia Cristã em 1948 aos nossos dias, o centro italiano é (era) o exemplo privilegiado da "durabilidade" no poder dessa posição partidária. Idem no geral para o Chile de 1938 a 1973 e Weimar não produz contra-exemplo, é antes o acelerado contraponto da conformação centrista a seguir interpretada (centro é baldeação para a direita e a DC italiana comprova-o mais uma vez).
O "atoleiro" de Duverger é essa permanência dos centros no poder e dos extremos na oposição, decorrentemente. Ele intui o problema —nada menos que a regra de ouro democrática, a alternância no poder, está em jogo—, Sartori dá a explicação. Aquela ocupação do centro deflagra uma "geopolítica" partidária sob a supremacia do (principal) partido do centro. Os extremos partidários são excluídos da chance de governar e em vez de coalizões alternativas, tem-se um rodízio periférico de centro-esquerda e centro-direita. Para completar, na condição de base e critério de toda possível maioria governamental, o partido centrista escapa à alternação e, fulmina Sartori, "seu destino é governar indefinidamente". E eis-nos subitamente deparados com a "ratio" do transformista (direita - "centro"). PFL: a "eternidade" no poder.
Imobilista por malformação, instabilizador endêmico, vocacionalmente anti-democrático —onde a "modernização" e o "fortalecimento" do sistema político atribuídos ao centro por Giannotti, sua "racionalidade"? E se a política converge para tal, qual a particularidade do "centro" (direita) PSDB-PFL? Subsiste uma a explorar: como dar conta de aliança político-eleitoral com parceiro politicamente incompatível (diz-se), por isso desqualificador dessa aliança, por isso arriscando negativar uma já tida e havida como discutível contribuição eleitoral?
Para a resposta Antonio Carlos Magalhães entra com os fatos, Sartori com teoria e tento explicação. Quando Lula disparava como provável vencedor das eleições presidenciais, o arauto da conexão grande empresa-mídia-caserna veio a público ameaçar com fugaz sobrevida constitucional para um eventual governo petista, dando a senha para a mobilização total anti-Lula. Encontro em Sartori que na configuração multiparditária de poder "a força (ou debilidade) relativa dos partidos pode ser classificada... de acordo com seu potencial final de intimidação (chantagem)". Em declínio eleitoral, o PFL está aí para avalizar a aliança e neste especialíssimo sentido "assegura" governabilidade —no jogo da política, a latência do golpe é seu cacife.

Centros-replicantes
Alinhavo conclusões sobre o centro contemporâneo. A abstração que vai do centro portador de identidade (para-ideológico) ao centro como "posição" ("centro métrico do sistema") é a distância entre um católico "Zentrum" nascido da luta contra a "Kulturkampf" e os centros-"replicantes" atuais.
O que se passa no interregno tem no multipartidarismo o pressuposto, sabe-se: ao número de deputados aí se justapõe a posição partidária, o centro sendo desde já a posição mais "favorável". Mas se por isso o centro sempre teve um ranço "oportunista", ninguém à época imaginaria Gramsci ou Gentile recrutados por ele ou tomando seu lugar. Aqui é que entra a "homogeneização"/corrosão da identidade vista por Duverger e Kirchheimer.
E do coquetel multipartidarismo-centro-"homogeneização" irrompe uma característica: o centro atual capitaliza o oportunismo numa 'cosmética' da identidade (charme posicional + coalescência ideológica) e troca no mercado político não mais identidade real, mas voláteis 'identidades' aparentes por favoritismo eleitoral. O que não raro induz um quase embaralhamento geral da identidade partidária, e "quase" porque, bisando o recurso à alegoria, permanece inconcebível Florestan Fernandes mas não Roberto Campos formando um centro político.
Noutras palavras: (a) a esquerda subministra o "quantum" de identidade do sistema político-partidário; (b) a direita acha no centro o álibi perfeito para sua envergonhada identidade; (c) é no comércio com a direita que o centro esvai sua mínima identidade, funcionando como "zona franca" da política partidária, espaço da despolitização e do "impolítico" (Julien Freund).
Finalmente, o centro hoje é o beneficiário de informações, literatura, intervenções —toda uma cultura "centrã" (guardo "centrista" para o partido) que extrapola a liberal neutralização do conflito político na censura ou desqualificação da esquerda como antagonismo residual ou excrescente. Óbvio que isso pressupõe Budapeste, Praga, Muro de Berlim e Praça da Paz Celestial, o fantasma de Stalin e a miséria do Plano. Mas supõe também a trama que vai da "morte do socialismo" ao "fim da história", passando pelo "fim da guerra fria" sob as botas de auto-investido xerife planetário.
E entre a realidade e sua contrafação, a um Bobbio que vê "o fim do comunismo histórico (dou ênfase à palavra 'histórico')" junto a "pobres e desvalidos... esmagados por magnatas econômicos inatingíveis e ao que parece imutáveis, dos quais sempre dependem as autoridades políticas, mesmo que formalmente democráticas"; a essa descida aos infernos, a cultura "centrã" prefere o ambiente climatizado do anátema e do chiste. "Atrasada" é, por exemplo, a esquerda que reoriente imperativos da chamada "internacionalização da economia" —em parte o outro nome de "despolitização universal". "Dinossauro" é a alcunha em moda para toda esquerda não "aggiornada" ou sem-culpa: imagine-se o debate em um nada aristotélico zôo político, com a direita em troco apelidada "hiena" ou "asno de Buridan", o centro...

Costas largas
Ao invés da refundação da política e do Estado, fundação do centro —corrupção (no sentido antigo) da política e torpor do Estado. Em vez da reestruturação da matriz Parlamento federal, carro-chefe numa "Agenda Brasil" séria, a "fé supersticiosa" (Weber) nesse "elemento de ditadura" (Kirchheimer) que é a maioria parlamentar —o que não encena "mãos limpas", mas costas largas para o campeão do desprezo popular.
"Atravessando o milênio" com a direita, o presidente arranha a alternância no poder que Giannotti deseja. Que resta no caso e a essa altura, para "a força de esquerda mais representativa dos movimentos populares" (Giannotti), o partido "mais organizado" (Fernando Henrique): o PT? Escribas de encomenda o antecipam, ao borrar "cenários" apocalípticos para eventual vitória petista e depois entoar melopéias sobre a indispensabilidade do PT vencido —é a esquerda-'sparring' de "donos do poder" no país. E as regras do jogo? Pelo andar da carruagem, não demora e a revolução volta à ordem do dia —"cui prodest", a quem interessa?

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