São Paulo, sábado, 18 de fevereiro de 1995
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'Carlota' expõe raízes da fracassomania

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

O Brasil nasceu duas vezes. A primeira, em 1500, de um acaso. A segunda, em 1808, de um vexame. Como certidão de batismo do primeiro nascimento possuímos a linda reportagem com a qual Pero Vaz de Caminha fundou o jornalismo brasileiro. Como registro do segundo e atribulado parto temos agora o melhor filme histórico da cinematografia brasileira, "Carlota Joaquina, Princesa do Brazil", de Carla Camurati.
Pode-se dizer que entre as duas datas o Brasil levou vida mais vegetativa e pasmada do que outros países latino-americanos, como, por exemplo, o México e o Peru, nos quais o descobridor-colonizador ao mesmo tempo que destruía antigas civilizações locais, plantava, fundando universidades, a semente da civilização espanhola que trazia em si. Tanto a Universidade de Lima quanto a do México foram estabelecidas em 1551.
O português que se instalou no Brasil só encontrou indígenas primitivos, que prontamente escravizou antes de capturar na África os escravos negros —e deitou na rede que os índios teciam com fibra de buriti. Universidade, nem pensar. As primeiras universidades brasileiras foram fundadas, no Rio e em São Paulo, em 1931. Foi este, aliás, o início da Era Vargas, cujo óbito oficial foi decretado no primeiro pronunciamento ao país do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Depois de assistir outro dia a "Carlota Joaquina" não consegui falar com Carla Camurati, que está viajando. Eu queria saber dela o que mais determinou a escolha que fez do tema central do seu filme —se foi, como sugere o título, a figura de Carlota, no seu frenesi de poder e sexo, se o extraordinário momento que representou para o Brasil a chegada da esquálida e fedorenta corte de Lisboa. A comida a bordo tinha sido escassa, água para banho nenhuma, a viagem interminável.
A esquadra saíra às carreiras de Lisboa, fugindo da invasão napoleônica, a 29 de novembro de 1807, só aportara na Bahia em janeiro e finalmente no Rio dia 7 de maio de 1808. No fim da travessia as caravelas e bergantins, de tão desconfortáveis, mais pareciam navios negreiros. O regente d. João chegou exausto e faminto, a rainha doida Dona Maria chegou enjaulada —sua loucura compreensivelmente agravada pela travessia— e a princesa Carlota quase insana também, mas de insopitável ira.
Soberbamente representada por Marieta Severo, Carlota mostra, além do horror que é ela própria, o horror que sente de trocar as artes e o luxo da Europa pela miséria de um Brasil e de um Rio que só mesmo Ney Latorraca (que faz Debret no filme) teria idéia de eleger para uma viagem pitoresca. No regente, nosso futuro d. João 6º, comodista, corno manso, fundador da indústria dos frangos no Brasil de tanto que os comia, Carla Camurati encontrou outro grande personagem a retratar e outro grande intérprete, Marco Nanini.
Carla Camurati adensou, agravou o mais que pôde o episódio da fuga vergonhosa da corte, mas não falseou nada. O maior dos historiadores portugueses, Oliveira Martins, fixou no mais sombrio dos tons e com a maior repugnância esse terrível momento da história de Portugal.
Eis a espécie de foto que fez Oliveira Martins de d. João no navio que o traria ao Brasil: "Napoleão estava burlado. O príncipe d. João, a bordo com as mãos nos bolsos, sentia-se bem remexendo as peças de ouro: ia contente com a sua esperteza saloia, única espécie de sabedoria aninhada no seu gordo cérebro. Bocejava ainda: mas porque o enjôo começava com os balanços do mar. É o que sucede à história, com os miseráveis balanços do tempo: vem o enjôo incômodo e a necessidade absoluta de vomitar".
Mas volto agora à minha pergunta, a pergunta que não fiz a Carla: o filme se dedica a impressionar mais pela impiedosa pintura que faz de Carlota e d. João, ou pelo Brasil que nele entrevemos, nascendo à nossa vista de um casal que ninguém escolheria para pai e mãe? Será que foi d. João, que aqui chegou vindo do seu próprio fracasso na Europa, quem fundou nossa fracassomania?
Padre Perereca (nosso competente historiador colonial, cujo nome de pia era Luiz Gonçalves dos Santos) adota quase o estilo do "Cântico dos Cânticos" para celebrar o acontecimento: "Já não é o Brasil um jardim fechado e vedado ao resto dos mortais". Para Perereca, era o próprio órgão vital do império português que vinha bater no Rio.
Esse transplante de coração "avant la lettre" parecia augurar tudo de bom, para todo o sempre. Como nada depois deu muito certo começou a germinar, primeiro tenra (como dizia Otávio Mangabeira da plantinha da democracia entre nós), mas depois fortíssima de raízes e rija de galhos, a fracassomania.
Mas cá estou eu a fazer conjeturas históricas a respeito de um filme que deve ser louvado pelo que é, pela direção de Carla Camurati, pela interpretação excepcional de Marieta e de Nanini e pelo trabalho de brilhantes atrizes e atores coadjuvantes do naipe de Maria Fernanda, Vera Holtz, Marcos Palmeira, Thales Pan Chacon, Beth Goulart, Antonio Abujamra.
Aliás, fiquei com uma idéia do que foi a elaboração de "Carlota Joaquina" depois que recebi da produção dois caprichados volumes, um de sólida pesquisa histórica e outro de divulgação iconográfica, com imagens da época, ilustrações do "storyboard", nome dos patrocinadores. Menciono esses detalhes porque eles mostram como dá trabalho fazer, desde os alicerces, um filme bom como "Carlota Joaquina, Princesa do Brazil".

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