São Paulo, sábado, 18 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Documentário decifra o mito Robert Crumb

LEON CAKOFF
DE BERLIM

Richard Peña, diretor do Festival de Nova York, onde o filme foi visto pela primeira vez, diz que "Crumb", de Terry Zwigoff, é o melhor documentário já realizado sobre um artista.
Robert Crumb, o artista perseguido pela câmera de Terry Zwigoff, 46, é considerado o Brueghel do século 20 por Robert Hughes, crítico da revista "Time". Os franceses o comparam a Picasso. Os americanos da era "politicamente correta" rebaixam Crumb a um misógino vulgar, a um desenhista de mente perturbada (o que é verdade), machista e pornógrafo.
"Crumb" acaba de vencer o prêmio de melhor documentário no Festival de Sundance e é um dos destaques da programação do Forum, evento paralelo do 45º Festival de Berlim.
O diretor conseguiu penetrar no trágico mundo particular de Crumb, entrevistar a sua mãe e dois irmãos. Pouco depois de concluir as filmagens, Charles, um dos irmãos entrevistados, suicidou-se. A mãe está afundada num sofá diante da TV há décadas.
Max, outro irmão, pensa que é um pintor surrealista, mas suas imitações de Dali são constrangedoras. Uma irmã recusou-se a aparecer no filme por um motivo radical: é ativista de um grupo de lésbicas que não admite qualquer convívio com homens.
Terry Zwigoff falou em Berlim com exclusividade à Folha sobre esta sua perturbada experiência de perseguir o grande guru do "underground", dos hippies e da contracultura americana por nove anos de filmagens, resultando em 119 minutos de um filme que o próprio Crumb ainda não assistiu.

Folha - Como foi possível penetrar com tanta liberdade na intimidade de Crumb?
Terry Zwigoff - Nem eu sei direito como tudo começou. Foram seis anos de filmagens, sempre dependendo mais dos meus próprios recursos do que da disponibilidade de Crumb, e três anos de finalização. Robert Crumb, que era um mito para mim, detesta publicidade. Tudo que quer é isolar-se, desenhar e produzir os seus cartuns.
Comecei a ver Crumb pela identidade que tinha com os seus personagens. Eu também fui ou sou um maníaco depressivo. O seu principal personagem é um constante auto-retrato que registra sem parar toda a história americana. Nós nos conhecemos em San Francisco, mas Crumb vive agora em Paris. Ele nunca fez nenhuma objeção em revelar a sua intimidade e a intimidade da sua família.
Mas tudo que ele recusa agora é ser usado para promover o filme, como a Sony, distribuidora do filme nos EUA, está tentando fazer. Vou mostrar o filme a ele na próxima semana em Paris, mas em uma sessão fechada de cinema, sem avisar ninguém. Não sou louco de estragar uma relação agora que o filme acabou.
Folha - Você também lembra um personagem do Crumb. Até onde a leitura dos quadrinhos de Crumb significou uma terapia para livrá-lo da depressão?
Zwigoff - Lembro mesmo? Mas é sem querer, nunca havia passado pela minha cabeça virar um personagem de Crumb. Ele me ajudou muito com sua criação e posso dizer que ainda ajuda se considerar os anos que me dediquei ao filme.
Antes de descobrir Crumb, tentava descarregar energias com a música. Aprendi a tocar um enorme número de instrumentos, e ainda toco, mas talvez tenha sido uma paixão comum que tenha facilitado as coisas. Tanto Crumb quanto eu somos fanáticos colecionadores de velhas gravações em 78 rotações de discos de jazz dos anos 20... Fiz questão de usar o filme para tocar várias dessas raridades da coleção de Crumb.
Folha - Graças ao filme volta-se a falar de Crumb. Mas o filme também mostra que a sua obra é quase infinita em número de desenhos. Para quem manipula o mercado das artes, os leilões e especula preços, o filme sobre Crumb pode ser negativo. Ele tem consciência disso?
Zwigoff - Certamente que sim. Senão não produziria nada. Crumb não pinta ou desenha para ganhar dinheiro. Ele não liga para dinheiro, isso está sempre no filme. Passou uma vida recusando-se a expor seus trabalhos em galerias. A exceção está no filme.
Se Crumb tivesse essas preocupações, ele certamente produziria menos e mais seletivamente. Crumb é um artista compulsivo. O desenho é a sua terapia. Isso também está no filme. A decisão de mudar para Paris foi mais da mulher de Crumb do que dele. Mas penso que a mudança lhe fez bem.
Os americanos vulgarizam muito a relação da arte com o dinheiro. Vai ser preciso, como sempre, a Europa valorizar o artista para que o americano também compre compulsivamente cada simples traço com a sua assinatura.
Crumb não é apenas o artista de uma geração, é de uma época. O mais importante de tudo não é ele ter os seus quadros pendurados em cada parede. E nós estarmos, em profusão, todos nós, representados no seu trabalho. É verdade que eu também devo parecer com um dos seus personagens. Mas você também pode se achar entre eles...
Folha - Qual pode ser o seu futuro no cinema? Maníaco depressivo, compulsivo ou simplesmente vai mudar de tema a cada filme?
Zwigoff - Hoje mesmo acordei com um monte de pesadelos na cabeça. Penso se devo ou não anotar esses sonhos para um próximo filme. O que nunca me sai da cabeça é a relação da arte com a depressão, a sanidade e a genialidade.
É verdade que já estão me querendo contratar em Hollywood, mas ainda não sei como devo fazer. Antes de tudo vou ter um agente, o que nunca tinha passado pela minha cabeça nos nove anos infinitos para terminar "Crumb". O que mais gostaria que acontecesse era alguém me oferecer um roteiro para eu dirigir a segunda parte de "Era uma Vez na América", para mim o maior filme da história do cinema.

Texto Anterior: Louvre cria novo laboratório para análise de obras de arte
Próximo Texto: Desenhista é herói da 'resistência ao sistema'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.