São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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Cidadania e reforma

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Um novo tema foi acrescentado à agenda da reforma constitucional nestes últimos 45 dias: a mudança do capítulo sobre a administração pública. Os outros temas —a reforma tributária, da Previdência e da ordem econômica— já estavam há vários anos sendo debatidos.
É sabido que, para sanear decisivamente as finanças públicas, a reforma do sistema de aposentadorias e pensões é a mais importante. Ninguém ignora, por outro lado, que uma reforma tributária que simplifique os sistemas, evite os impostos em cascata, isente a exportação e reduza a sonegação, é também essencial para a consolidação do plano Real. Finalmente, o debate nacional destes últimos anos já deixou claro o interesse nacional em corrigir os dispositivos constitucionais marcados por um velho nacionalismo estatizante.
Não estava claro, entretanto, a importância e urgência de se discutirem os temas específicos da administração pública, particularmente problemas da aposentadoria integral dos funcionários, do regime jurídico único e da estabilidade. Por isso, quando coloquei o problema em debate ao nível nacional, a reação inicial foi de surpresa de quase todos e de irritação dos que se sentiram atingidos. Surpresa natural da sociedade civil, já que esse tema fora pouco ou nada discutido anteriormente. Irritação compreensível dos líderes sindicais do funcionalismo, já que os interesses corporativos são sempre míopes, pensando apenas a curto prazo.
Essa surpresa e essa irritação transformaram-se logo em um diagnóstico e uma recomendação: "o tema é polêmico, o presidente da República só deve enviar a respectiva emenda mais tarde". Passados 45 dias, entretanto, o quadro mudou completamente. Porque a surpresa transformou-se em interesse e em apoio de uma sociedade em que os princípios da cidadania avançam cada dia; porque a irritação dos autodenominados "defensores dos pobres e oprimidos" tornou-se logo suspeita. Afinal, defendem o direito e a justiça ou simples privilégios?
Senti essa mudança da sociedade imediatamente, à medida que a imprensa me dava a oportunidade de esclarecer as propostas que estava apresentando. Primeiro, senti a mudança nos amigos e conhecidos que encontro em toda parte e que manifestavam seu apoio decidido senão indignado; em seguida, nos próprios jornalistas de Brasília que inicialmente haviam reagido quase agressivamente; depois nos congressistas, que encontrava nas reuniões com os partidos políticos; finalmente nos governadores e prefeitos, que passaram em grande número a dizer: estas reformas não são apenas necessárias para a União, são também essenciais para os estados e municípios.
E as manifestações têm vindo de toda a parte, inclusive de prefeitos e líderes do PT. Ainda na última sexta-feira ouvi Lula falar na rádio CBN que a estabilidade dos funcionários não deveria estar na Constituição, mas regulada apenas no estatuto dos funcionários. E acrescentou que era favorável à demissão de funcionários que se mostrassem desinteressados e incompetentes. Não me surpreendi com a afirmação. Podemos discordar de Lula, mas é impossível negar-lhe o espírito público e a defesa da cidadania. Uma pesquisa do Instituto Soma deixou o fato definitivo: 63% da população paulista já apoia a flexibilização da estabilidade dos funcionários públicos.
Foi a compreensão da importância do tema que levou, inicialmente, o presidente FHC a incluir o ministro da Administração Federal e Reforma do Estado entre os participantes dos seminários com os partidos e aos líderes sindicais; foi, em seguida o apoio crescente da sociedade que convenceu o próprio presidente e seu conselho político a decidirem incluir a administração pública na primeira leva das reformas: a emenda deverá ser levada na quarta semana.
Na primeira estão sendo enviadas as emendas relativas à ordem econômica; na segunda semana, as relativas à Previdência, inclusive o sistema de aposentadoria dos funcionários; na terceira, a reforma tributária; e finalmente, na quarta, a reforma do regime jurídico único, que engessou dramaticamente toda a administração pública brasileira, e a estabilidade rígida, que acobertou uma minoria de servidores incompetentes e desinteressados.
É claro que o tema continuará "polêmico". Na verdade, todos os temas da reforma constitucional o são. E é óbvio que os interesses corporativos estreitos continuarão a se opor às reformas da administração pública. Quando a preocupação fundamental de um certo tipo de servidor é tirar vantagens do Estado, é conseguir sempre mais e mais benefícios, sem se solidarizar com a instituição como um todo, sem se preocupar com sua saúde e a solvência financeira, a oposição às reformas que eliminam privilégios estará sempre presente.
Essa oposição, na falta de bons argumentos para defender a aposentadoria por tempo de serviço, a aposentadoria integral, o regime jurídico único e a estabilidade indiscriminada e rígida, usa, muitas vezes, de recursos pouco civilizados, como ofensas pessoais colocadas em cartazes, alto-falantes, e até em comerciais de televisão. Mas esse tipo de "estratégia" acaba por desmoralizar seus autores.
Tenho sentido este fenômeno em várias ocasiões. Quando mostro a líderes sindicais que os funcionários públicos da União aposentados têm um benefício médio 13,5 vezes maior que o dos beneficiários do INSS, ou quando mostro que se aposentam antes dos 50 anos enquanto os trabalhadores mais pobres se aposentam em média com 62 anos, percebo que ficam embaraçados, senão envergonhados.
Se grupos corporativos, mas dignos, que defendem um serviço público prestigiado e bem pago, ficam envergonhados diante desses fatos, o que dizer dos cidadãos brasileiros, dos cidadãos contribuintes que pagam seus impostos e se sentem com o direito a um serviço público eficiente, de boa qualidade e sem privilégios? Os cidadãos não ficam envergonhados, ficam indignados.
Essa indignação é fundamental para que as reformas constitucionais sejam aprovadas. É uma indignação crescente. É uma indignação que colocou o tema da administração pública na agenda da reforma constitucional. É uma indignação que os deputados federais e os senadores saberão reconhecer. É, enfim, uma indignação que deixa o governo otimista em relação à reforma, embora o presidente em nenhum momento tenha deixado de alertar seus ministros sobre a dificuldade da tarefa e sobre a paciência e a capacidade de negociação que ela exigirá.

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