São Paulo, quinta-feira, 23 de fevereiro de 1995 |
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O melhor amigo do homem (e da mulher)
MOACYR SCLIAR — Ele se chamava Jorge — disse a mulher — Exatamente como você.Fez uma pausa e prosseguiu: — Mas aí terminam todas as semelhanças. Nova pausa, e agora o tom de rancor era evidente. — Esse Jorge era um cachorro. Um cachorro, sim. E não pense que tinha algo de especial. Ao contrário: não era nenhum destes cães que aparecem nos filmes, estes bichos inteligentes que atacam os bandidos e salvam as crianças. E não era um cachorro de raça. Não era um pastor alemão, não era um pointer, não era um fox. Era um cachorro vira-lata. Vira-lata, você sabe o que é: estes cães que andam pela rua sem que ninguém se importe com eles. Você sabe o que estou falando? Ele ouvia, em silêncio. — Pois é - prosseguiu a mulher — o vira-lata Jorge era de uma cidade pequena de Minas. Andradas, você sabe onde é? Nem eu. Mas está aqui no jornal: Andradas. É uma notícia sobre a morte do Jorge. Ele morreu. Você vai me perguntar: a troco de quê o jornal noticiaria a morte de um cachorro vira-lata? Não é isto que você vai me perguntar? Hein, Jorge? Não é isto que você vai me perguntar? O marido, quieto. — Mas o jornal noticiou porque o cachorro, o vira-lata Jorge, foi enterrado em Andradas com todas as honras. O prefeito mandou tocar a marcha fúnebre no funeral. E havia lá mais de mil pessoas. Você sabe por quê? Esperou um pouco e, como ele continuasse mudo, continuou: — Porque o Jorge era querido na cidade. É o que diz a notícia: "Ele ia a todas as festas e era adorado por todos." Vou repetir, para o caso de você não ter ouvido bem: o Jorge ia a todas as festas e era adorado por todos. Isto é o que diz a notícia. Dobrou cuidadosamente o jornal — era uma mulher caprichosa — guardou-o. Por um instante ficaram ambos em silêncio. — Você sabe qual é a diferença entre você, Jorge, e o seu xará, o cachorro? Sabe? Eu acho que você sabe, mas em todo o caso eu vou lhe dizer. O cão, você sabe, é o maior amigo do homem. E você não é amigo de ninguém, muito menos de sua mulher. Deteve-se para observar o efeito da frase, e continuou: — Em segundo lugar: o Jorge ia a todas as festas e era adorado por todos. Você não só não é adorado por ninguém, e muito menos por mim, como não vai a festa alguma. Há quantos anos não saímos de casa? Diga, há quantos anos não saímos de casa? Minhas amigas todas passeiam, se divertem. Eu não. Não saio. E não saio por causa de você. Porque você não gosta de festas, não gosta de gente, não gosta de nada. Levantou-se, lançou-lhe um derradeiro e ressentido olhar: — Mas pode ficar tranquilo, Jorge; eu não estou cobrando. Se você não quer ir a festas, nós não vamos a festas. Não vou brigar com você por causa disto. Mais: quando você falecer, vou encomendar um enterro com todas as pompas. E vou mandar tocar música. Não a marcha fúnebre, porque não haverá motivo para tristeza. Mas mandarei, sim, tocar música. E depois cairei na gandaia. Texto Anterior: Mato Grosso do Sul; Mato Grosso Próximo Texto: Nem estética, nem ética Índice |
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