São Paulo, quinta-feira, 23 de fevereiro de 1995
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Julio Bressane faz mosaico de Mário Reis

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Para início de conversa —ou melhor, de filmagem—, Julio Bressane fez o que dele se espera: rodou algumas poses. E do jeito que ele mais gosta, tendo ao fundo a fulgurante paisagem do Rio. Em primeiro plano, a atriz Giulia Gam lê trechos de uma crônica de Manuel Bandeira sobre o enterro do compositor Sinhô. Atrás dela, todas as águas que banham a cidade, inclusive aquelas que Sinhô atravessava de barca quando teve sua última e fatal crise de hemoptise, em agosto de 1930.
Tudo rápido, calmo e simples. Bressane não gasta película à-toa. Quase sempre uma tomada lhe basta. Por isso seu novo filme, "O Mandarim", começou a ser rodado na segunda-feira e no próximo dia 12 já estará todo na lata. Tremenda performance, sobretudo se levarmos em conta que até o dia 6 a produção estará de folga.
"Ia só começar depois do Carnaval, mas a ida do Chico para a Europa, na sexta-feira (amanhã), me obrigou a antecipar os trabalhos", explica Bressane.
O Chico é o Buarque, Noel Rosa no filme. Giulia Gam é uma jovem sem nome que foi estudar medicina na Áustria e Alemanha, nos anos 20, e um dia passou pela vida do cantor Mário Reis (1907-1980), o personagem central de "O Mandarim", encarnado por Fernando Eiras. Em outra oportunidade, ela e Noel também se cruzaram. E até se beijaram, onde o céu azul é mais azul.
São Pedro não ajudou muito. Bressane queria um céu límpido, como o dos "westerns" de Anthony Mann, mas teve de contentar-se com uma variação mormacenta. "Mário era uma figura solar, irradiante, que cantava sorrindo", explica o diretor, após rodar uma panorâmica das praias da zona sul carioca.
Seu ângulo é o melhor possível: um mirante do Alto Leblon, conhecido como Sete no Céu, por causa das sete curvas que até lá nos levam. Claro que muitos o chamam de "Sétimo Céu". Mas não é bem Frank Borzage que sua mata suspensa me evoca, e sim o Henry King de "Suplício de uma Saudade". Numa de suas colinas, uma borboleta poderia pousar no ombro do Chico Buarque. Bressane ri da sugestão, mas não se desvia de suas referências. Estruturalmente, "O Mandarim" será apenas um misto de "Cidadão Kane" com "A Condessa Descalça". O mosaico é a única forma compatível com o que se sabe da vida de Mário Reis.
Duas tomadas do dia apontaram outra referência: Hitchcock, useiro e vezeiro em beijos giratórios. E mais uma me é fornecida pelo próprio autor: o pintor francês do final do século passado Georges Seurat. "Vou fazer algumas imagens pontilhistas, utilizando filtros especiais, que entrarão no filme como pequenos relâmpagos."
Sem perder a pose sob um calor de rachar catedrais, Fernando Eiras mantém nos trinques o seu personagem. Quase nada faz no primeiro dia de filmagem. Também teve direito a um interlúdio romântico, beijando a atriz Drica Moraes, amiga da personagem de Giulia Gam, mas limitou-se a ouvir Noel, ou melhor, Chico, cantar duas músicas do poeta da Vila ("Provei" e "Filosofia") e o "Hino da Marata".
Marata, forma abreviada de maratona. Invenção de um tal de Siqueira, compositor bissexto e obscuro, mais conhecido como "Menino Jesus", da patota do Mário e Noel. Com eles, costumava flanar do Flamengo ao Leblon, jogando conversa fora e cheirando cocaína. Cismou, de uma feita, que a maratona merecia um hino. Fez a letra ("Como é belo ver os astros lá no céu/ a rebolir-se" etc.) para Noel, que não compôs a música. Se não fosse o Chico, o "Hino da Marata" estaria sem música até hoje.
"Não pretendo romper com a visão mítica que se tem do Mário", promete Bressane. Mário Reis não era exatamente aquilo que as pessoas imaginam. Não era, em suma, um personagem para Cary Grant ou David Niven, mas para Oscarito e Ankito —desde que bem vestidos. Embora borboleteasse nas altas rodas do Rio, sua misteriosa vida privada foi pouco documentada e pior guardada. "Consegui 15 fotos de Mário nos anos 30, que um primo dele havia guardado", revela o cineasta. "É uma raridade, pois ele só se deixava fotografar profissionalmente, para capas de discos."
Sabe-se que uma prematura paixão ceifada pela morte abalou para sempre a sua libido. Morreu virgem, como Kant e Newton. Mas Bressane só descobriu isso depois de entrevistar o médico particular do cantor.
Por falar em morte, Bressane já decidiu o que fazer com a lacuna deixada por Tom Jobim. Ele ia encarnar Villa-Lobos, que não só conhecia Mário Reis como também fazia seus ternos, fraques e casacas no mesmo alfaiate. "No filme, eles andariam juntos pelas velhas ruas do centro do Rio. Mudei tudo. Tirei o Villa-Lobos da história e pus em seu lugar o próprio Tom, que também conheceu o Mário." Seu intérprete? Edu Lobo.
O resto fica como estava previsto, com Gilberto Gil fazendo as vezes de Sinhô, Paulinho da Viola encarnando Ismael Silva, Gal Costa vivendo Carmen Miranda e Maria Bethânia sintetizando as duas mairoes intérpretes de Noel, Aracy de Almeida e Marília Batista. A cartomante que, entre outras coisas, previu o encontro do cantor com Carmen, será interpretada por Renata Sorrah. Mais uma licença poética. Na verdade, Mário não se consultou com uma cartomante, mas com uma macumbeira do Encantado, subúrbio da zona norte do Rio.

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