São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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O paradoxo da arbitragem na MP da distribuição de lucros

SELMA MARIA FERREIRA LEMES

A MP 860, de 27.01.95, que regula a participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados das empresas, prevê no artigo 4º que, em caso de impasse na negociação, a controvérsia poderá ser solucionada por mediação ou "arbitragem de ofertas finais". Contudo, o tipo eleito não é a arbitragem. É um jogo de cara ou coroa.
Isso mesmo, o árbitro deve restringir-se a optar pela proposta apresentada, em caráter definitivo, por uma das partes. Suponhamos que uma parte encontre o valor de 10 e a outra de 100. O árbitro está impossibilitado de adotar o meio termo, por exemplo, 45. Deverá escolher 10 ou 100. Não lhe é dado inferir nada; deve simplesmente escolher uma das propostas.
Nenhuma semelhança há entre o instituto jurídico da arbitragem e a denominada "arbitragem de ofertas finais". Quando muito poderia aproximar-se do arbitramento, procedimento utilizado para avaliação de fatos ou coisas no sentido de apurar o seu valor, como, por exemplo, a fixação de percentual de reajuste previsto em contrato, o "quantum" devido numa indenização etc., mas este instituto também não se amolda ao proposto na Medida Provisória.
A arbitragem ou juízo arbitral previsto no Código de Processo Civil—CPC é meio de solução de controvérsias fora da Justiça Estadual que tem como alicerce, entre outros princípios, o da independência da decisão em face do livre convencimento do árbitro, que analisa a questão, sopesando os fatos, as provas, subsumindo-os à norma legal, decidindo de acordo com o que entende correto, fundamentando sua decisão; pode inclusive resolver a questão por equidade (de acordo com o seu real saber e entende fora das regras de direito), se para isso estiver autorizado pelas partes.
A liberdade de aferição do árbitro se equipara à do juiz, apreciará livremente as provas, atentando aos fatos e circunstâncias presentes, devendo indicar na sentença (ou laudo) os motivos que lhe formaram o convencimento (art. 131 do CPC).
Destarte, em face destas características essenciais, como o "árbitro de ofertas finais" poderá desempenhar seu mister. Estará preso a uma das duas propostas; não lhe é dado efetuar nenhum juízo de valor; deverá pegar ou largar qualquer uma delas.
Com efeito, verifica-se que o legislador, não obstante instituir a arbitragem como uma faculdade, objetiva que as partes efetivamente a evitem, posto que, como é óbvio, estas perseguem uma decisão justa, não pretendem participar de um jogo. A época do ordálio ou Juízo de Deus, no qual, através de uma prova de fogo, ferro em brasa ou duelo, se decidia sobre a culpabilidade ou inocência de uma pessoa (critério "non sense"), repousa na Idade Média.
Como proposto, falhando a mediação, as partes fatalmente desaguarão no Judiciário; são forçadas a isso. Note-se que a postura adotada na MP é a antítese do discurso contemporâneo. O Estado conclama aos cidadãos o exercício pleno da cidadania participativa, esperando que estes cortem o cordão umbilical com o Estado, evitando sua tutela em questões que eles próprios possam resolver. Ao mesmo tempo torna absolutamente não convidativa a utilização de meios extrajudiciais de solução de controvérsias. É um paradoxo.
Por outro lado inova ao equiparar a decisão arbitral (laudo) à sentença judicial, como aliás está proposto no Projeto de Lei sobre Arbitragem que tramita desde 1992 no Congresso Nacional, de autoria do então senador Marco Maciel. Este projeto, tornando-se lei, muito poderia contribuir para disseminação da arbitragem em todas as questões que envolvam direitos patrimoniais disponíveis, como vem ocorrendo em todo o mundo.
O sistema proposto de arbitragem de ofertas finais pode ser factível alhures, onde é raro o recurso às Cortes Oficiais em razão das delongas, dos custos elevados, e de que raramente a decisão arbitral difere da adotada nos Tribunais; assim, resta a arbitragem como única opção para as partes. Neste caso a arbitragem de ofertas finais tem função dissuasória, isto é, de forçar as partes por elas próprias decidirem a questão no consenso e não através de terceiros.
Porém, na versão doméstica, o tiro saiu pela culatra e feriu de morte vítima inerme: a arbitragem, conquanto obrigue as partes a recorrerem ao Judiciário.
Todavia, ainda há tempo de evitar este arremedo; para isso, basta que na reedição da MP se adote a arbitragem, sem peias. A distribuição da Justiça não é um jogo. Um julgamento justo, seja através da arbitragem ou do Judiciário, é direito de todos, assegurado na Constituição.

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