São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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Papel do Estado: FHC na trilha certa

ANTONIO KANDIR

Declaração e iniciativas recentes do governo, como a lei de concessões e as emendas à ordem econômica, têm provocado decepção no mercado. A queda das bolsas de valores, puxado pela desvalorização das ações das estatais de energia e telecomunicações são reflexo desse sentimento.
Aos olhos do investidor em bolsa, o presidente teria abandonado posições agressivamente "privatizantes" e limitado-se a adotar medidas que abrem de modo marginal oportunidades de negócio na área dos monopólios estatais.
Há nessa decepção um misto de mal-entendido e divergência de perspectiva. O mal-entendido começa por se ter imputado ao presidente, talvez pela disputa com um candidato "à sua esquerda" nas eleições, posições que jamais foram dele ou de seus aliados mais próximos. E prossegue com a dificuldade de mensurar as mudanças que a lei de concessões e as propostas de flexibilização dos monopólios, se aprovadas, irão produzir na estrutura produtiva do país, com surgimento de oportunidades de negócio para o setor privado.
Acoplada às propostas de flexibilização dos monopólios, a lei de concessões permite compatibilizar dois objetivos que não se deve separar: I) a atração de investimentos privados em infra-estrutura, indispensáveis para elevar a competitividade da economia e evitar limitações físicas ao crescimento. II) o fortalecimento do controle público sobre as condições de oferta de infra-estrutura e bens de utilidade pública (não mais o controle direto do Estado como ofertante monopolista, mas um controle efetivamente público, adequado à realidade do país).
Tivesse o governo dado preferência à privatização acelerada das principais subsidiárias e "holdings" de setores chave como energia elétrica e telecomunicações, como parecia desejar o mercado, a oportunidade de consolidar-se um controle efetivamente público estaria ameaçada.
Em primeiro lugar, porque hoje o Estado está semidestruído, sendo necessário tempo para estruturar instâncias de controle eficaz e adequado, não bastando para tanto que os termos do controle estejam registrados na letra da lei. Em segundo lugar, porque nos setores em questão há forte tendência à concentração de capital, visto que, neles, todo ganho de escala implica sempre redução de custos.
Não resta dúvida de que a estratégia alternativa à do governo teria maior impacto sobre a atração de investimentos privados e permitiria ganhos financeiros vultosos no curto prazo, com a venda de ativos públicos de valor elevado. A experiência internacional indica que a estratégia do governo tende a produzir efeitos positivos mais duradouros sobre os níveis de investimento e assegurar condições melhores de acesso da população a bens de utilidade pública.
A razão está em que, sendo forte a propensão à concentração de capital nos setores em pauta, a privatização de empresas monopolistas do setor público, na ausência de instâncias capazes de regular o funcionamento do setor no momento seguinte, tende a resultar em simples "troca de guarda": sai o monopólio estatal e entra o monopólio privado, sem que se verifiquem os ganhos imputados a uma situação de maior concorrência entre diversos ofertantes.
Nessa transição do modelo antigo, com origem na era Vargas, para o modelo novo, cujas feições definitivas ainda não é possível antecipar, teria sido imensa temeridade adotar de saída o caminho da privatização desejada pelo mercado. Os ganhos de curto prazo não compensariam as perdas potenciais a prazo mais alongado.
A esse propósito, é natural haver divergência de perspectiva entre o governo e o mercado, que apostou em forte e abrupta valorização de algumas "blueships". Espantoso seria se um governo como o do presidente Fernando Henrique se orientasse pela maximização dos ganhos de curto prazo, em prejuízo de uma visão estratégica mais abrangente.

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