São Paulo, quinta-feira, 2 de março de 1995
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Agora é cinzas

MOACYR SCLIAR

Como acontece a muitas pessoas, ele acordou na Quarta-Feira de Cinzas tonto, com a cabeça pesada, nauseado. Como acontece a muitas pessoas, ele acordou num lugar que não lhe era familiar. Como acontece a muitas pessoas, ele estava numa cama, tendo ao lado uma mulher desconhecida, que lhe sorria. E como acontece a muitas pessoas, ele olhou o relógio, levantou-se, disse que ia para casa.
Diferente do que acontece a muitas pessoas, porém, a desconhecida segurou-o pelo braço:
— Não vai, não. Você vai ficar aqui.
Ele olhou-a, assombrado.
— Escute; não sei quem você é, mas seguramente conheci você no clube, certo?
— Certo.
— Eu pulei com você toda a noite, e depois viemos para cá, certo?
— Certo.
— Pois é isto: a gente se divertiu, foi tudo muito bom. Mas agora eu tenho de ir para casa, certo?
— Errado — disse ela, sempre sorrindo. — A propósito, meu nome é Mara.
— Prazer, Mara. Mas o que há de errado no que eu lhe falei?
— Que você vai voltar para casa. Sua casa agora é aqui.
Por aquela ele não esperava:
— Que história é essa? Eu tenho minha casa, tenho mulher, tenho uma filha de sete anos...
— Tem, não: tinha. A sua mulher agora sou eu.
Ele, cada vez mais assombrado:
— Você é minha mulher? Quem foi que disse?
— Você. Talvez você não se lembre, mas você me pediu em casamento, eu aceitei. Você disse que eu sou a grande paixão de sua vida. Você disse que ia se separar de sua mulher, que nunca mais queria vê-la.
— Eu disse isto? Mas estou casado há mais de dez anos com minha mulher! Claro, a gente tem esse trato: no Carnaval eu sou livre, mas na quarta-feira eu volto.
— Não foi isto que você disse — ela sorria, sempre.
— O que foi que eu disse?
— Você disse que sua mulher é uma chata, que ela enche o saco, que você estava cansado das aporrinhações dela e que agora você estava livre.
— Minha mulher, uma chata? E por que seria ela uma chata?
— Não sei. Foi você que disse. Não só isto, como você telefonou para ela e disse que não ia voltar mais. Eu ouvi ali, na extensão. E ela respondeu que também estava muito satisfeita de se ver livre de você.
Ele suspirou:
— Bem, se eu disse, está dito. — Sorriu: — Muito prazer, Mara. Espero que vivamos felizes para sempre.
Beijaram-se, e ele entrou no banheiro para fazer a barba. Estava ali, assobiando, quando ela entrou:
— Não assobie, por favor.
— Por quê?
— Porque não gosto. Tenho horror de homem que assobia, cantarola, essas coisas.
Foi então que ele lembrou por que sua mulher era chata. Exatamente por isso: não gostava que ele assobiasse, que ele cantarolasse, nada. Estava vivendo exatamente a mesma situação.
E ainda faltava um ano para o próximo Carnaval.

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