São Paulo, quinta-feira, 2 de março de 1995
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Darcy Ribeiro, o mágico

LAURO CAMPOS

Jean-Paul Sartre dizia que o homem é o único animal que ri. Se é verdade o que escreveu o notável marxista francês, Darcy Ribeiro consegue ser homem até debaixo d'água, a qualquer momento, em quaisquer circunstâncias. De onde, de que manancial o mestre Darcy consegue extrair o jorro de seu sorriso que brota de sua boca, de sua face iluminada, o fluxo sem fim de sua alegria eterna?
Os mágicos não revelam seus segredos e Darcy Ribeiro, que tudo contou para seus amigos, para o próximo, para o mundo, esconde num riso matreiro, mineiro, a fórmula secreta de sua sorridente exuberância, oráculo de sua hominidade, isto é, de seu sorriso. Cabra macho é aquele que externaliza o seu ser homem na feminilidade do sorriso, usa o riso e a alegria para serem a forma da essência sartriana do homem.
Gostaria de pesquisar de Montes Claros aos confins da selva, de Belo Horizonte à Sorbonne que lhe conferiu o título acadêmico máximo, onde foi que o danado do Darcy Ribeiro encontrou a fórmula mágica que permite que ele extraia de sua fonte sorridente o segredo da eterna juventude, da inesgotável alegria de viver. Deve ter sido noutra cultura, entre sortilégios e bruxarias assoprados em seus ouvidos por avatares invisíveis que ele aprendeu a transformar o terrível Tanatos, irmão de Hipnos e filho da Noite, em seu amigo, com quem brinca, a quem certamente ensinou a sorrir... No nosso Brasil, onde não sabemos nascer, onde não nos ensinaram a crescer, onde não se sabe morrer, não foi certamente no nosso Brasil que o jovem Darcy aprendeu o que aqui não se ensina.
Como o de que eu gosto mesmo neste mundo é de desvendar segredos, desmascarar mágicos, desnudar ideólogos e demagogos, resolvi levar a sério a empreita de descobrir a magia de Darcy Ribeiro. Para não revelar sua fantástica caixa de Pandora, Darcy afirmou, em sua volta ao Senado, que foram os rituais indígenas, as energizações esotéricas e as exotéricas, as rezas ortodoxas, o chá de Norton, a sapiência dos pajés de avental branco e a vontade positiva dos amigos ateus os responsáveis por sua ressurreição.
Darcy ria e escondia, brincalhão, dentro de seu riso, a fórmula encantada que usa para exorcizar a morte, espantar Tanatos. É que Darcy é o antídoto da morte, é Eros redivivo. Mas ele não é um Eros grego qualquer, um ser demiúrgico, um "ente" da razão mitológica. Darcy é um Eros universal, nascido nas Minas Gerais, onde recebeu suas formidáveis pulsões de vida, dos úberes das vacas de estimação, dos seios brotantes das mocinhas que recobrem com as roupas leves da timidez o vir a ser, que já devia ter sido ontem, de suas maravilhosas eclosões eróticas. Da terra furada, pegada com as mãos infantis, dos bodoques certeiros, das brincadeiras inventadas da prática que se estende dali para o infinito do tempo e para os confins do mundo, da ação que incendeia a inteligência e faísca a imaginação que volta a ser trabalho renovado, inquietude objetivados em criações e ousadias.
Entre o rir, o pensar e o agir não há solução de continuidade: na personalidade de Darcy aqueles são apenas momentos de um mesmo processo vital e revitalizante. O homem não pára. Do fundo das vozes ouvidas em sua infância nos claros montes, deve se destacar uma voz premonitória: "Pára, Darcy, este Darcy não pára, êta menino danado!"
Cruzei com Darcy Ribeiro tantas vezes na vida —eu que fui professor de sua Universidade de Brasília, "filha prostituída", como ele disse certa vez, e, portanto, vivi quase 30 anos enclausurado dentro de uma obra dele, já cruzara com ele uns vinte anos antes, em minha casa, que ele frequentava, para conversar com meu pai, seu professor Carlos Campos, em Belô. Darcy Ribeiro tira a vida de sua cabeça das energias da prática e retira a pulsão que o leva a mudar o mundo do desajuste, do inconformismo que incendeia seu lado crítico. No princípio era o verbo. A linguagem e o trabalho produziram o homem, esta inquietude entificada. Desajustado na Faculdade de Medicina, pulou para a de Filosofia e desta para São Paulo onde reencontrou a ação no campo da pesquisa prática.
Ao contrário de FHC, Darcy Ribeiro não foi marxista. Darcy é uma contradição em processo, uma síntese que se abre para novos conflitos, para o reinício da renovação que nunca envelhece. Por isso só os dialetas são modernos, porque sua cabeça muda e se renova para acompanhar as mudanças do mundo de que sua cabeça constitui apenas um momento, um modo de ser.
Darcy emerge, sorridente, de mais uma de suas aventuras: ele acaba de brincar de mergulhar no rio da morte. E promete: daqui pra frente ele se entregará apenas a Eros, pois "namorar é a melhor coisa do mundo". Seus setenta e tantos anos de juventude fecharam as páginas de sua última obra intelectual, reconstrutora fria do mundo e da vida. Agora, ele quer só a vida, direta, batida na cuia da mão como água clara que brota da pedra e escorre do morro para a boca. Suspeito que Tanatos vai deixá-lo definitivamente em paz, desistir de levá-lo com aquela besteira do câncer, que ele já mostrou que sabe tirar de letra, ou com umas pneumoniazinhas sem vergonha.
Darcy Ribeiro escreveu, em Belô, capítulo de seu livro "Migo", que duas facções se digladiavam em Minas, naquela época: a dos que mamavam no poder, a dos Beneditos, dos Chiquinho Campos, dos Capanemas e Alkimins. E a outra, dos desapeados do poder, dos Miltinhos, dos Afonsinhos, Virgilinhos e Pedrinhos... Solitário, completa Darcy, descobri Carlos Campos, único sábio que conheci. Uma vida inteiramente dedicada a estudar e a meditar. Triste e solitária vida...
Gostaria de ser sábio e probo, mas não tanto quanto Carlos Campos. O que Darcy parecia ignorar é que o sábio que ele descobrira era primo de muitos daqueles "inhos", do Chiquinho ciência, do Bené Valadares, ambos sobrinhos de meu avô, do Afonsinho e do Virgilinho, também primos de Carlos Campos, parente do Gustavo Capanema.
Se você aprendeu alguma coisa com meu "sábio" pai, Darcy, revele-me a fórmula mágica de seu riso. Eu sei que é ele a expressão da alegria de seu trabalho sadio que dinamiza sua inteligência que, por ser inteligente, encandece novos risos alegres. Não foram os bruxos menores que conseguiram sua ressurreição. Sua força telúrica vem de dentro de você mesmo, você é o milagre de sua vida.

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