São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Top models, topless, top quarks

MARCELO LEITE

À primeira vista, os seios descobertos de Valeria "Globeleza" Valenssa nada têm a ver com os de Luiza Brunet, que desfilaram devidamente cobertos. Muito menos relação teriam, em princípio, com a morte da dinamarquesa Alice Christiansen, a moda das top models ou a responsabilidade social do jornalismo.
De um certo ângulo, porém, todas essas coisas se tocam. Seu ponto de contato é o que se poderia chamar de mercantilização do corpo da mulher, na falta de palavra melhor.
Seria cabível também falar em coisificação, reificação, alienação, mas são termos em desuso. Foram aposentados, como toda a crítica social de inspiração marxista, depois da queda do Muro de Berlim, da globalização da economia, do fim da história, de todo esse outro nhenhenhém.
O ponto de partida desta reflexão talvez anacrônica encontra-se na primeira página da Folha de quarta-feira (que já foi de Cinzas). Ao lado de uma manchete equivocada ("México faz pacote para dar socorro a empresas", quando o assunto do dia era a prisão do irmão do ex-presidente Carlos Salinas de Gortari), Valenssa exibia seu par de seios com a mesma sem-cerimônia com que dotou de dois esses seu sobrenome artístico.
Com essa foto da moça, o jornal deu uma sonora pancada na ferradura. O cravo ele acertou ao incluir no mesmo quadro "Carnaval" duas chamadas sobre a violência inerente a essa festa tão brasileira: "Dinamarquesa é morta por vigia no Rio" e "Homicídios já superam os do ano passado". Fantasia e realidade.
Nada contra a dançarina. Os seios são dela e ela mostra quando e onde quiser. O que me chamou a atenção foi o fato de só a Folha ter publicado a foto na capa. Nem "O Globo" a editou, apesar de ligado à rede de TV que usa e abusa daquele corpo de mulher sem voz nem personalidade, reduzido a um grafismo de marca.
Antigamente, mocinhas só pensavam em se tornar miss. Hoje, toda garota que tiver a sorte (ou o azar) de ser bonita ou de compor um "tipo" qualquer pensa logo em produzir o "book" e sair se oferecendo por aí. Seu instrumento de trabalho é o próprio corpo, mas virtualizado em fotografias retocadas por computador, disciplinados pela anorexia como ideal de vida.
A imprensa é a praça pública em que se desenvolve esse novo comércio de mulheres, o monitor em que suas cotações sobem e descem à vista de todos. Se o seu valor de troca crescer muito, passam a almejar uma ponta em novela global. Um dia, quem sabe, a glória das madrinhas de bateria. Sorte grande, antes da fama, é servir de troféu para algum ricaço numa recepção a chefes de Estado, como ocorreu com a jovem Gissele, à qual também não faltam curvas e esses.

Desfiles
E não se argumente que passarela não é sambódromo, porque os figurinos são cada vez mais parecidos e os corpos, cada vez mais exibidos, como em recente desfile da Phitoervas. Reproduzo aqui um comentário da crítica interna da edição de 13 de fevereiro, com o título "Mundo Fashion":
"O jornal explora muito bem, com competência, esse novo filão narcísico-juvenil. Na minha opinião, falta só um pouco de espírito crítico sobre essa manifestação cultural, algo que talvez só possa ser importado de fora da confraria.
"Alguém, por exemplo, que tenha olhos para ver e palavras para avaliar o grotesco de imagens como as da pág. 5-10 (o mamilo de Claudia Liz que escapa do sutiã, o anoréxico Johnny Luxo com corselet e calça feitos de tecido de poltrona de avião, o costume verde-limão de Kaufmann)."
De volta ao sambódromo: alguns viram mais conservadorismo neste Carnaval, mais recato, menos mulher nua. Esta impressão deve ter sido deixada pela imagem de Lilian Ramos, desta vez de calcinha e até uma comportada calça jeans, publicada no mesmo quadro da capa da Folha de quarta-feira. Segundo a autodenominada modelo, este ano ela manteve o nível de 1994: depois de um camarote de presidente, frequentou um de ministro. (Cada país tem o primeiro escalão que merece.)
Bem, se foram de fato escassas as mulheres peladas, os jornais souberam encontrá-las, assim como as câmeras de TV. Além disso, desconfio de que certo deve estar Joãosinho Trinta, que comparou a nudez carnavalesca ao mar: vai e volta.
O mesmo, lamentavelmente, não se pode dizer da violência impregnada na sociedade brasileira. Ela sempre impera, selvagem, primeva e nada cordial, durante o Carnaval. Quando se limitam a mostrar só plumas e paetês cobrindo ou revelando belos seios, os jornais deixam de mostrar o outro lado da festa. Daí o acerto da composição tensa obtida no quadro da capa da Folha: Valenssa e Christiansen, Lilian Ramos e homicídios.

Estupros
Alice Christiansen veio desfrutar o Brasil que amava, mas voltou para a Dinamarca em um caixão. Tudo indica que foi vítima de um ataque sexual animalesco.
Tem razão seu pai, o médico Bruno, quando diz conformado que o crime poderia ter acontecido em qualquer país do mundo. Com efeito, ocorrem também muitos estupros na Europa —apesar de tanta civilidade, história e sofisticação. Lá também, terra das "maisons" de alta costura e das praias de nudismo, usa-se e abusa-se dos corpos das mulheres.
O equívoco está em que muitos europeus, aí incluídos os jornalistas, sucumbem à fantasia de um país desreprimido, liberado, em que as mulheres sambam nuas no Carnaval e vivem seminuas o resto do tempo. A terra em que a alegria impera e sempre se dá um jeito em tudo —apesar de tantos traficantes, meninos de rua e miséria.
Leia as palavras de Alice à Rede Bandeirantes, falando do Brasil: "Isto é uma delícia, eu adoro. Eu não quero mais voltar para a Dinamarca, eu vou ficar."
Diante desse quadro de engano trágico, um jornalista que não esteja completamente obliterado deveria perguntar-se sobre o que, em seu trabalho, contribui para melhorar ou piorar esse estado de coisas, em que os corpos de algumas mulheres valem tanto e a vida de outras, tão pouco.

Quarks
Não é todo dia que surge uma descoberta importante em matéria de partículas subatômicas. Há anos físicos do mundo inteiro jogam boliche com átomos e assemelhados, em seus caríssimos aceleradores de partículas, para ver se espirra algum quark do tipo "top" (quarks são considerados as peças básicas da matéria, algo tão abstrato que ganharam apelidos —ou "sabores"— tão estranhos quanto "bottom" e "strange").
Cientistas do Fermilab (EUA) confirmaram na quinta-feira que os cálculos anunciados em 1994 por um grupo rival estavam corretos. Ou seja, por um bilionésimo de bilionésimo de segundo, seus computadores "viram" o ensaboado quark top.
Notícia de primeira página, sem dúvida. Foi o que fez "O Estado de S.Paulo", na edição da própria quinta, sob o título "EUA anunciam fim de mistério sobre partícula". Na Folha , nada. Mas ainda havia tempo para recuperar o tempo perdido, pois o anúncio oficial seria no mesmo dia, e o jornal poderia preparar um bom material para a edição de sexta.
Nova decepção. A Folha teve, sim, uma reportagem razoavelmente destacada sobre o tema, na pág. 1-13, com um título burocrático: "Físicos confirmam detecção do quark top". Nenhuma ilustração didática, histórico, quadro sinótico sobre os outros quarks, léptons, múons e companhia. Nem sequer uma linha na primeira página.

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