São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Mito de Don Juan inspirou de Mozart a Camus

NICOLAS MARTIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A época moderna produziu poucos mitos, contentando-se em atualizar o patrimônio da Antiguidade grega, rica neste particular. Curiosamente, foi na Andaluzia que nasceram, no século 16, os mitos de Don Juan, do Cid e de Don Quixote, e no século 19 o de Carmen, pelas penas de autores espanhóis e franceses: Tirso de Molina, Cervantes, Corneille e Mérimée.
Fui a Sevilha e me debrucei sobre o túmulo de Don Juan, ou mais precisamente de Miguel Ma¤ara, nobre sevilhano que serviu de modelo para o primeiro texto, a peça de teatro de Tirso de Molina, "El Burlador de Sevilla", encenada em 1625.
Após uma vida dedicada à libertinagem e aos prazeres da sedução, Miguel Ma¤ara se arrependeu, converteu-se e dedicou o fim de sua vida e toda a sua fortuna aos pobres.
Para expiar seus pecados, mandou construir o Hospital da Caridade, no centro de Sevilha. Atravessamos os pátios decorados com os tradicionais azulejos brancos e azuis, que conduzem à capela: uma das mais puras obras-primas do barroco andaluz, inteiramente concebida e ornamentada sob a orientação de Ma¤ara-Don Juan!
Sua imensa fortuna lhe permitiu redimir seus pecados com uma suntuosidade que faz parte do personagem; ele encomendou ao pintor Murillo duas telas magníficas —a primeira representa São João de Deus carregando um doente nas costas, encorajado por um anjo, e a segunda, Santa Isabel protegendo uma criança aleijada.
Ao lado delas, outra tela de Juan de Valdès Leal mostra dois caixões abertos: dentro de um deles, um bispo, no outro, um cavaleiro, com os rostos já desfigurados pela morte e consumidos pelos vermes. No centro, uma balança que simboliza o julgamento de Deus, com a seguinte inscrição: "ni más ni menos", ou seja, todos se vêem na mesma situação diante da morte.
É difícil imaginar esse outro sedutor do século 18, o italiano Casanova, convertido e rodeado de imagens macabras, pois para ele o prazer não era pecado. Para Don Juan, pelo contrário, é a revolta contra o poder religioso que o leva a seduzir, perverter e arrancar Dona Elvira de seu convento. O prazer tem um preço: o pecado.
A lápide de Miguel Ma¤ara fica na entrada da capela, para que os visitantes a pisem com seus pés.
O personagem de Don Juan ilustra bem o caráter andaluz: aqui o encanto e o humor não têm lugar —a paixão reina sozinha. Em Sevilha, as grandes festas tradicionais glorificam, durante a Semana Santa, a crucificação de Cristo, e, durante a Feria, a morte do deus Touro na arena da Maestanza.
E eis aí a chave do mito de Don Juan: o desafio e a morte. O castigo de morte por haver desafiado a ordem, encarnada pelo personagem do Comendador, a estátua de pedra que executa Don Juan na última cena. Rebelião e morte também para Carmen, sua contraparte feminina.
Mas, como todos os mitos, Don Juan, criado na Andaluzia e ilustrando a força e a violência de uma cultura ainda marcada pelo confronto das culturas árabes e cristãs (a Andaluzia só foi reconquistada inteiramente em 1492), escapa de sua terra natal e vai conhecer na França, com Molière, sua obra-prima universal e pouco depois, com Mozart, uma versão italianizada e mais libertina. O andaluz Ma¤ara se metamorfoseia em cidadão europeu.
Em 1644, um jovem ator desconhecido de 22 anos, de nome Jean Baptiste Poquelin, decidiu assumir o pseudônimo "Molière" e tornar-se dramaturgo. Ele assume a direção de seu primeiro teatro e imediatamente se confronta com a rude realidade dessa arte.
Para começar, não tem um lugar para se apresentar: Molière instala sua trupe num salão de "jeu de paume", uma espécie de squash mas com as dimensões do tênis. Quando os jogadores encerram sua jornada, a trupe monta às pressas um cenário improvisado e faz suas apresentações.
Mas há algumas pequenas despesas a cobrir, apesar disso, e poucos meses após haver escolhido o belo nome de Molière —sem jamais haver explicado porque—, ele é preso por dívidas de seu teatro, em duas ocasiões.
Em 1645, Molière é obrigado a deixar Paris para tentar a sorte em outras regiões. Ele só retorna a Paris 13 anos mais tarde.
A vida em Paris jamais será simples para este provocador incansável, sempre no limite entre o elogio real e a Bastilha (a prisão do Estado, destruída pela Revolução). Quando escreve "Don Juan", ele acaba mais uma vez de escapar por pouco da prisão, por causa de "Tartufo", em que muitos dignitários da Igreja Católica se enxergaram. A peça é proibida.
Em muito pouco tempo, para resolver o estado de desemprego técnico de sua trupe, Molière escreve "Don Juan" (inspirando-se na peça de Tirso de Molina, que dá a volta da Europa com sucesso, em várias versões reescritas), mas o escândalo é maior ainda.
Molière volta ao ataque, com os temas mais contestatários: religião, família, nascimento, sociedade. É bem verdade que ele tem a prudência de escolher como personagem que veicula esse pensamento subversivo um homem de má reputação, sedutor sem moral e sem coração. Mas o príncipe de Conti, antes seu protetor, fica escandalizado: quem defende os valores morais, na peça, é o criado de Don Juan!
A peça será apresentada apenas 15 vezes antes de ser retirada de cartaz, sob pressão de seus inimigos. Mais uma vez, Molière escapa da Bastilha por pouco. Ele nunca mais apresentará a peça durante sua vida: ao lado de um Don Juan que ele dotou de uma dimensão épica e política, ele inventou o personagem de Sganarelle, o criado, alter-ego do rebelde: ele representa o "bom senso popular", com seus lados críticos —a peça conclui com a seguinte exclamação de Sganarelle, depois do castigo de Don Juan: "E meu salário? Meu salário!"—, mas também seu conformismo e indolência.
No próprio dia da quarta representação do "Doente Imaginário", Molière tivera o pressentimento de seu fim próximo, mas se apresentara no teatro e representara seu papel pela última vez.
Também Don Juan é um ator, ele representa a comédia. Como um ator, Don Juan prepara cada noite uma história diferente, assume um hábito diferente, para conquistar um público diferente: o seu é único, a cada vez uma nova mulher...
Mas sobre esse pano de fundo da sedução, Don Juan é um personagem que revoluciona todas as idéias recebidas. Sua visão do amor, chocante para a época, é, segundo Albert Camus, a mais moderna da literatura: "É um outro amor que agita Don Juan, e este amor é libertador. Ele traz consigo todos os rostos do mundo e seu frêmito vem do fato de que sabe ser transitório. O único amor generoso é aquele que se sabe ao mesmo tempo passageiro e singular: são todas essas mortes e essas vidas que constituem, para Don Juan, o conjunto da vida. É a maneira que ele tem de doar e de fazer viver..."
Mais dramático: como o ator, Don Juan sabe que vai morrer —seu criado, Sganarelle, o anuncia desde a primeira cena, como nas tragédias gregas— e ele morre excomungado, como todos os atores no século 17.
Ainda se acendiam piras fúnebres em praça pública nesse século, que vê nascer os philosophes e apontar a Revolução. Don Juan vai arder nas chamas do inferno no último ato... Personagem ambíguo, complexo, ele carrega no seu coração o desafio, pelo prazer de desafiar a ordem, até o pior cinismo, e o amor, pelo prazer da conquista, até a amarga constatação da solidão de quem "tudo pôde conquistar, mas nada possui", segundo as palavras de Alexandre, o Grande, em seu leito de morte, com quem Don Juan se identifica no primeiro ato.
Na peça de Molière, o erro de Don Juan é o de não aceitar as regras do jogo social. Mas ele assume suas próprias, não há nada de improvisado nele, ele avança generosamente em direção ao castigo que o aguarda, escolhendo ele próprio o lugar e a hora de sua morte, guilhotinado de certa forma como o serão, mais tarde, os arautos da liberdade Danton e Robespierre...
Eis seu destino —e aquele que assume a liberdade de decidir seu próprio destino não pode jamais ser verdadeiramente punido.
Criado em 15 de fevereiro de 1665, o Don Juan de Molière foi montado uma única vez em São Paulo, há 30 anos, por Fernando Peixoto, com Guarnieri no papel-título, e nunca foi editado em português no Brasil!
Com Molière, Don Juan assume uma dimensão européia. Pouco depois Da Ponte publica o libreto do Don Giovanni de Mozart (1787) e a carreira do sedutor segue adiante. Hoffman fará um novo musical (1813), Byron uma sátira épica (1819), Puchkin uma tragédia (1813), Alexandre Dumas —recentemente "em cartaz" em São Paulo com "A Rainha Margot" e "Kean"—, escreve "Don Juan de Ma¤ara ou la Chute d'un Ange" (Don Juan de Ma¤ara ou a Queda de um Anjo) (1837), e depois Lenau (1844), Baudelaire (1846), Verlaine (1884), Milosz (1913), Edmond Rostand (1921), Ghelderodc (1928), Brecht (1952), Max Frisch (1953), Montherlant (1959) e Otavio Frias Filho (1995), entre outros...
Sem falar nos ensaios, conferências e artigos de Sigmund Freud, Roland Barthes ou Albert Camus. Sem dúvida, nenhum mito terá inspirado e suscitado tantas polêmicas na história da literatura e do pensamento crítico.
Camus, que fez dele o "herói absurdo" de seu ensaio "O Mito de Sísifo", imagina Don Juan, como seu modelo Ma¤ara, retirado num convento, olhando com o frio cinismo de um monge, mas não sem melancolia, para "alguma planície silenciosa da Espanha, terra magnífica e desalmada em que ele se reconhece".
É que na verdade esse homem nos fala com mistério: esta terra não será feita primeiramente para nos permitir colher seus prazeres? Mas, como no epitáfio do quadro de Juan de Valdès Leal, o que restará quando após as alegrias e os sofrimentos restar apenas uma única saída comum a todos: a morte?

Tradução de CLARA ALLAIN

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