São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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A subversão teatral pelo riso

NICOLAS MARTIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Diretor teatral e ex-diretor do Conservatório Nacional de Arte Dramática (a mais prestigiosa escola de formação de atores franceses), Jean-Pierre Miquel assumiu em 1993 a direção da Comédie Française, o mais famoso teatro parisiense.
A sala principal da Comédie Française foi reinaugurada em janeiro, após reformas que duraram um ano, e abriga agora a mais recente versão da obra-prima de Molière, "Don Juan", em direção de Jacques Lassalle.
Foi sobre esta encenação, a obra de Molière e o teatro francês que Jean-Pierre Miquel falou com exclusividade à Folha, em Paris.

Folha - O sr. dirige o mais antigo teatro francês, aquele que nasceu sob ordens do rei Luis 14, graças a Molière. Agora que a sala acaba de ser reaberta, após um ano de restaurações, o sr. retoma o "Don Juan" de Molière. Por que essa escolha?
Jean-Pierre Miquel - "Don Juan" é considerada a peça mais moderna de Molière. Primeiramente por seu tema, que ultrapassa de longe o contexto de sua época —o século 17— e seu espaço —a peça trata de um cavalheiro sevilhano, mas se passa na Sicília, ou seja, em todo lugar—, e também, eu acho, por sua estrutura, que foge do esquema clássico: aqui as regras do teatro clássico francês (a unidade de tempo, lugar e ação) são revolucionadas. A peça assume uma forma épica e dramática que a aproxima da dramaturgia shakespeariana e, por antecipação, da brechtiana.
Folha - Mas Molière, em toda sua obra, já havia tomado muitas liberdades com as regras do teatro clássico...
Miquel - Molière inventou a "comédia de costumes". Isso confere a suas peças, e especialmente a "Don Juan", uma dimensão eterna, pois os costumes são, infelizmente, eternos... Seu olhar sobre o homem e sobre a sociedade possui uma precisão tão grande que se mantém penetrante até hoje. Se ele "inventou" a comédia francesa, foi justamente por chegar, graças ao riso (embora a comédia não seja uma farsa), mais perto do coração humano. E assim a comédia, que até então era vista como um gênero menor, inclusive pelo próprio Molière, pela primeira vez adquiriu um status nobre.
Se Molière se ateve tanto aos costumes, foi também por sua condição de profissional do teatro: ele queria constituir um repertório dramático. Tomemos o exemplo de Sganarelle, o criado de Don Juan. Esse personagem que ilustra o caráter do homem astuto de baixa condição, cheio de bom senso, mas também oportunista, aparece desde o início da carreira de autor de Molière. De início é um personagem que se contenta em ser ridicularizado para desencadear o riso. Mas, em Sganarelle, Molière criou o personagem que "pode falar" sem comprometer seu autor, o que lhe confere grande força. Não o levamos a sério, mas ele pode dizer coisas inusitadas!
A outra força de Molière, bem caracterizada pela dupla Don Juan-Sganarelle, é que o autor nunca toma partido, ele nunca dá razão inteiramente a seus personagens, nem os retrata como inteiramente errados. Não há nada de maniqueísta em Molière, motivo pelo qual foi rudemente criticado por todos os clãs absolutistas.
Folha - De modo geral, identifica-se o teatro clássico, do qual a obra de Molière faz parte, como o contrário do teatro de contestação. Entretanto Molière foi um contestador, frequentemente censurado, tendo se aproximado tanto da prisão quanto dos salões de Versalhes.
Miquel - Molière soube utilizar —o que ainda é muito moderno— o teatro como um contra-poder. Contra os poderes, no plural, que se cruzam na sociedade, o poder da moda, da religião, da elite intelectual, das classes em ascensão, dos médicos etc.... O único poder que ele não pôde criticar, evidentemente, é o do Rei. Mas ele fala também do poder das mídias, notadamente na "Critique de l'École des Femmes". Na maioria de suas peças, e especialmente em "Don Juan", pode-se pensar que ele chega a se comportar como o factótum do rei Luís 14: ele fala o que o rei quer que seja divulgado, mas que o soberano não pode permitir-se dizer pessoalmente. É esse o caso no que diz respeito aos devotos e aos libertinos, meio que Molière não frequentava, mas que o rei queria submeter.
Folha - Molière assume o risco de identificar-se com seus personagens, e especialmente com Don Juan?
Miquel - Acredito que em "Don Juan", como no "Misantropo", por exemplo, Molière coloca na boca de seus personagens pontos de vista pessoais, e alguns deles são facilmente verificáveis, como por exemplo o conflito com o poder eclesiástico, que exige seu castigo, assim como o comendador castiga Don Juan em nome dos céus. Mas daí a dizer que o personagem de Don Juan é uma espécie de porta-voz de Molière é ir longe demais.
Folha - As técnicas teatrais, que mudaram muito desde Molière, podem modernizar o repertório clássico...
Miquel - Sim, em primeiro lugar no plano da pesquisa estética. Apelamos a diretores jovens para renovar as leituras de Molière. Eu mesmo dirigi minha primeira peça de teatro aos 33 anos. O mesmo se aplica a Vitez, Lavelli, Marechal, Youssef Chahine, Strelher, Grber ou Alexander Lang, para citar apenas alguns. É verdade que tínhamos um problema que nossa reforma atual vai melhorar: somos um teatro de repertório e apresentamos espetáculos todos os dias, mas em alternância, o que nos obriga a desmontar e remontar os cenários diariamente, e até agora foi isso que impediu Chéreau, Brook ou Bob Wilson de trabalharem aqui. Mas com nossa reforma, adquirimos meios tecnológicos e podemos comportar os cenários mais complexos.
Folha - Fala-se frequentemente que o teatro de Molière —e o teatro francês em geral— é um teatro moralizador e um teatro de texto. É essa sua opinião?
Miquel - Sim, e é justamente isso que constitui ao mesmo tempo sua originalidade e seu universalismo: o humanismo nem sempre está na moda, mas nossa tradição está aqui. Os séculos passam e a gente vê que é um valor que não desaparece. Teatro de texto? Também. Para nós, o teatro é antes de mais nada literatura. Será que isso é um defeito? Não sei, mas é uma singularidade. Tomando essas duas características, não vejo outro senão Shakespeare que também as ilustre. E são esses os dois autores mais universalmente representados: Molière e Shakespeare.
Folha - Como definir o "ator francês", descendente longínquo de Molière e de seus colegas?
Miquel - Eu falaria de um jogo teatral europeu, resultado dos pontos de vista e das práticas de Diderot, Stanislavski e Brecht.
Folha - É essa sua referência quando o sr. contrata novos atores na companhia?
Miquel - Sim. Acabo de contratar oito, todos jovens.
Folha - Eles são diferentes de seus atores antigos?
Miquel - Sim. Hoje em dia os jovens atores formados por nossas escolas têm boas técnicas e sabem valorizar sua presença em cena. Antigamente, os atores eram antes de mais nada bons "faladores", eles tinham qualidades de respiração, e também um gosto pelo particularismo que o cinema matou ao uniformizar o jogo. Acrescento que cada ator tinha suas especificidades de interpretação: não se representava Corneille como Molière etc. Isso não existe mais. Pelo contrário, os atores buscam o natural. Frequentemente se vêem desarmados diante dos grandes textos. Se ouvimos Sarah Bernhardt, a grande atriz do final do século passado, ela cantava seus papéis, quase como na ópera!
Folha - Don Juan seria o símbolo do ator excomungado?
Miquel - Pela Igreja. Ele é um alvo dos poderes, pois o teatro não pode abrir mão do apoio da coletividade. No fundo é Molière quem exigiu pela primeira vez a existência do teatro subvencionado e público. Trupe do rei. Hoje, como na Grécia antiga, o teatro é assunto da república: pertence a todos para estar acima dos apetites de cada um. Para procurar dizer as mais duras verdades. De preferência, sem sofrer o castigo de Don Juan!

Tradução de CLARA ALLAIN

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